Galeno Amorim: Ele tinha um lado
Fotos: Filipe Peres
Neste emocionante artigo, nosso colunista Galeno Amorim, presta uma justa homenagem ao companheiro Garcia: "Por anos, pensei em fazer do meu amigo Luís Carlos Garcia personagem de um dos meus livros. Não fiz. Quem sabe agora, que é tarde demais, não seja a hora..."
Há
quem se recorde dele como líder metalúrgico inflamado, envergando um macacão de
operário da finada Zanini. Outros, que vieram depois, conservam lembranças dele
como o incendiário comandante de boias-frias em greves por melhores salários e
condições de vida, que atazanava a vida dos usineiros e poderosos de plantão.
Já os mais novos falam com certo orgulho do líder comunitário dos sem-teto em
sua luta infindável por um lugar ao sol - ou protegido dele.
Em
todas as situações, ele tinha um lado.
Mas a
imagem mais antiga que tenho dele é outra. É ele literalmente causando - como
se diz na gíria de hoje - sobre um par de tamancos, última moda nos morros
cariocas daqueles anos 1970. Sapateava com orgulho, se equilibrando sobre sua
madeira opaca, nas ruas sem asfalto do Lagarto Verde, onde iam parar os
desvalidos e miseráveis no epicentro do mar de cana e riquezas que rodeavam a
cidade, de não mais que 35.000 almas.
Luís,
no início, era mais amigo do meu irmão, cujas idades se aproximavam. Eu era
mais amigo do Natal, o irmão dele. Os quatro juntos aprontávamos diabruras
próprias da idade e da condição social. O jogo de bola em campinhos de chão
batido era uma paixão em comum que nos opunha - ele à frente do seu Santos F.C;
eu, dono do Palmeirinha F.C. Vem daí a outra lembrança era ele um ponta direita
irritantemente driblador e provocador.
Com
Luís e o irmão tomei, pela primeira vez, ainda adolescente, o rabo de galo,
mistura de cachaça com vermute. Também me esmerei na arte de roubar laranja -
furtar, eu aprenderia mais tarde, ao virar repórter de polícia - em terras dos
usineiros. Luís, que já tinha morado com a família na colônia da fazenda, nos
convencia que era uma tolice deixar tanta fartura se estragar enquanto tanta
gente não podia desfrutar.
Ele
ainda não sabia, mas já era uma espécie de Robin Hood em terras sertanezinas.
Passei várias festas de Natal e Ano Novo na casa dos Garcia, capitaneada pelo
pai, Geraldo, um homem simples, pobre e rigoroso, de uma retidão de caráter
inigualável. Foi nessa casa modesta, não mais que um barraco, que eu me escondi
quando, certa vez, resolvi fugir de casa - mas esta já é uma outra história.
Mais
tarde, seria colega do Luís Carlos - era assim que se apresentava, carregando
no sotaque importado nos esses dos dois nomes combinados - na bancada de
vereadores da Câmara de Sertãozinho do início dos anos 1980, que assumi, aos
vinte anos, algumas vezes, suplente que era - inclusive no lugar do próprio
Garcia, por conta de licenças de saúde. Púnhamos fogo no plenário naqueles
tempos sombrios de final de ditadura, quando acreditávamos que o embate quase
mortal de ideias entre esquerda e direita era uma tarefa ingrata da qual não se
podia fugir. Nem passava por nossas cabeças o que o futuro nos reservaria para
o milênio seguinte...
Eis
que, agora, fico sabendo da morte do Luís, não se sabe ao certo se pelo
Coronavírus, por uma dengue mal curada ou se foi a pneumonia, seguida de
meia-dúzia de paradas cardíacas, que o levou. Justo ele que se meteu em tanta
confusão, levou tiro e cacetada da polícia.
Só sei
que, com ele, se vai também uma parte rica da minha memória afetiva. Luís era
polêmico, às vezes atrapalhado, às vezes podia até soar meio demagogo.
Mas
tinha méritos inquestionáveis. Sempre, repito, teve um lado. E não é difícil
adivinhar qual. O lado dos desafortunados, dos pobres, dos lazarentos. O que,
convenhamos, não é pouco em um mundo tão marcado pela desigualdade que grita
entre os que têm e os que não têm - um embate que muitos insistiam, ao menos
até agora, não existir mais.
Por anos, pensei em fazer do meu amigo Luís Carlos Garcia personagem de um dos meus livros. Não fiz. Quem sabe agora, que é tarde demais, não seja a hora...
Sequência de imagens que marcaram a presença, quase que constante, do Garcia na sede do PT de Ribeirão Preto:
Galeno Amorim é presidente do Observatório do Livro e da Leitura e ex-presidente da Biblioteca Nacional e do Cerlalc/Unesco (Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe)
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