Ser mulher e mãe em tempos de pandemia

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Ser mulher e mãe em tempos de pandemia

Historicamente, mulheres têm carregado, sozinhas, a maioria dos serviços de cuidado, quer seja da casa, quer seja das crianças e idosos dentro da família. Trata-se de trabalho invisível e, portanto, cujo valor deixa de ser reconhecido, sendo muitas vezes entendido como algo “natural” e intrínseco ao gênero feminino. 


Com as mudanças sociais no último século, e com as transformações dos papéis sociais e de divisão do trabalho entre os gêneros, mulheres assumiram também funções de trabalho remunerado e sustento da prole. Atualmente muitas delas são, inclusive, chefes de família e respondem, sozinhas, pelo cuidado cotidiano, educação e sustento dos filhos. São as chamadas mães solo, que, conforme pesquisa divulgada em maio de 2020, pelo Instituto Locomotiva, somam cerca de 11 milhões de brasileiras.  


Ainda, conforme mostrado pelo Huffpost Brasil num artigo de 2018, de acordo com pesquisas publicadas nos últimos anos pelo IBGE, as famílias no Brasil são cada vez mais chefiadas por mulheres, sendo que mais de 80% das crianças têm como primeiro responsável uma mulher e 5,5 milhões não têm o nome do pai no registro de nascimento. Esses dados mostram claramente a forte presença feminina na condução da educação dos filhos na realidade social brasileira.


Não é de se estranhar, portanto, que paire sobre essas mulheres uma sobrecarga sem tamanho. Para dar conta de tal desafio, necessitam contar com uma efetiva rede de apoio, quer seja da escola, quer seja de familiares, que possam realizar funções de cuidado e supervisão dessas crianças enquanto a mãe sai de casa para trabalhar e, assim, trazer o sustento para o lar. Mesmo assim, chegando em casa, muitas ainda acumulam as funções de limpeza, preparo de alimentos, cuidados com as roupas, além de precisarem e desejarem dedicar seu tempo para estar, de fato, com os filhos. 


Nos relatos dessas mulheres pode-se constatar sofrimentos de diferentes ordens, tais como cansaço extremo, culpa pelo tempo ausente e por nem sempre conseguirem a dedicação esperada. Além disso, falta-lhes tempo para si próprias, para sua própria realização pessoal ou para atividades de lazer, relacionamentos afetivos, para socializarem ou mesmo para se curtirem. Obviamente que, não raro, tais questões são comuns mesmo para mães que contam com a presença do pai no contexto doméstico, dadas as desigualdades de gênero que estão profundamente arraigadas na nossa cultura; afinal, é sabido que as brasileiras empregadas dedicam mais tempo aos cuidados domésticos do que os homens desempregados e essa é uma realidade facilmente constatável em muitos lares de nosso país. Entretanto, para as mães solo não há alternativa, diálogo ou negociação possível: os filhos têm somente a elas, e a mais ninguém.


Neste ano de 2020, essas mulheres viram sua situação, já bastante difícil, se transformar e se tornar ainda mais desafiadora. Com o surgimento da pandemia do coronavírus, uma grave ameaça à vida se impôs, complicando e aprofundando as desigualdades e dificuldades já existentes para essas mulheres-mães. Escolas foram os primeiros estabelecimentos que fecharam as portas, deixando uma lacuna sem precedentes para a organização da vida e rotina de trabalho dessas lutadoras. As avós, quando idosas, grupo mais vulnerável à covid-19, necessitam de proteção e para tanto, isoladas, não podem auxiliar como rede de apoio.


Diante disso, necessitando manter o distanciamento social, fundamental para a contenção da pandemia e para a preservação da vida e saúde de seus filhos e delas próprias, muitas dessas mães se viram sem condições de prosseguir com suas atividades laborais fora do lar, agravando-se as vulnerabilidades existentes e impondo-se ainda mais desafios para elas.


Com a situação de confinamento abrupto, essas mulheres se viram dentro de casa 100% do tempo com os filhos, sem contato com outros adultos e com poucas possibilidades de exercer atividades laborativas que lhes tragam, além do salário, realização pessoal. As crianças e adolescentes, por sua vez, com o distanciamento social e a restrição das possibilidades de entretenimento, lazer ou mesmo de atividades físicas, muitas vezes mostram-se mais irritadiços, agressivos, com problemas de sono, apetite, entre outros, resultando em uma pressão sem igual sobre essas mulheres-mães e gerando, para muitas, sofrimento emocional relevante.


Como se não fosse suficiente, outra enorme e urgente dificuldade aprofundada com a pandemia foi a questão do sustento do lar. Em pesquisa realizada em maio de 2020, divulgada pelo Instituto Locomotiva, 35% das mães solo não tiveram renda suficiente para comprar alimentos e 31% não conseguiram adquirir itens de higiene. Quase 8 em cada 10 tiveram a renda familiar reduzida devido a Covid-19 e 54% já atrasaram o pagamento de contas.


No fim de março, após muitas dissidências e disputas políticas, o Congresso aprovou a lei que garante o benefício de R$ 600,00 a trabalhadores informais e o dobro do valor a mães responsáveis pelo sustento da casa, não sem antes enfrentar forte resistência da bancada governista quanto aos valores propostos. Tal medida teria o condão de aliviar, ao menos em parte, o sofrimento das famílias, sobretudo das chefiadas por mulheres; entretanto, a realidade não foi bem essa.


Não foram poucas as vezes em que os noticiários mostraram situações em que essas mulheres-mães não conseguiram ter acesso ao referido benefício, tanto pelas dificuldades em demonstrar a necessidade ou a inclusão nos critérios estabelecidos, mas também porque os pais vinham tentando (e muitas vezes conseguindo) incluir os filhos nos seus cadastros — mesmo que não tivessem a guarda ou não fossem eles os principais responsáveis pela criação da prole.


Com o escopo de corrigir tais falhas, o Senado aprovou no início de julho o projeto que garantia prioridade à mulher chefe de família no recebimento do auxílio emergencial, em caso de informações conflitantes nos dados cadastrais. Entretanto, neste dia 29 de julho, o Exmo. Presidente da República, Sr. Jair Bolsonaro, vetou o projeto integralmente.


Assim sendo, a ineficiência do programa, a burocracia e a falta de fiscalização adequadas no que se refere à distribuição dessa renda entre essas mães solo veio incrementar os problemas já enfrentados, resultando em uma verdadeira situação de desamparo e desassistência a esse grupo. Como se não bastasse, o governo federal obstaculiza iniciativas legislativas que poderiam promover maior segurança financeira às mães solo durante a pandemia, impossibilitando uma existência minimamente digna para essas mulheres.


Nesse contexto, algumas iniciativas têm surgido entre grupos de mães e ativistas para tentar ajudar nesse processo. Como exemplo, em entrevista divulgada pela Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz), foi revelado que, juntos, o Coletivo Massa e o Instituto Casa Mãe criaram o projeto chamado “Segura a curva das mães”, iniciativa que funciona como uma rede de cuidado e também fornece uma verba emergencial de 150 reais para cada mãe acolhida, além de oferecer apoio psicológico e suporte jurídico e escolar. Assim sendo, a sociedade (sobretudo em sua fatia feminina) tem tentado se organizar para suprir a falta do Estado na garantia dos direitos fundamentais dessas mulheres-mães e seus filhos.


Neste momento, mais do que nunca, mostra-se necessário que as mulheres ocupem espaços de poder e, com isso, possam levar adiante iniciativas amplas e eficazes, de caráter afirmativo, para a reparação dessas injustiças e para a promoção da qualidade de vida dessas mães-solo. É imprescindível minimizar seu sofrimento e dar condições para que elas possam seguir garantindo a segurança e proteção de seus filhos também e sobretudo, durante a pandemia. É preciso corrigir essa enorme discrepância: em pleno século 21 ainda seguem imperando diretrizes governamentais do patriarcado, mesmo que na prática sejam as mulheres as grandes responsáveis por carregar nas costas o maior de todos os desafios: a criação, educação e, não raro, o sustento das gerações futuras. 


Saiba mais em:

https://www.huffpostbrasil.com/2018/09/18/7-numeros-da-realidade-das-mulheres-que-criam-filhos-sozinhas-no-brasil_a_23531388/

https://www.ilocomotiva.com.br/single-post/2020/05/11/GLOBONEWS-M%C3%A3e-solo---115-milh%C3%B5es-de-m%C3%A3es-do-Brasil-n%C3%A3o-contam-com-aux%C3%ADlio-dos-pais-de-seus-filhos

http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/48990

https://www.camara.leg.br/noticias/680028-bolsonaro-veta-prioridade-a-mulher-chefe-de-familia-no-auxilio-emergencial/


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Perla Müller é advogada, professora universitária, escritora e pré-candidata a vereadora de Ribeirão Preto pelo Partido dos Trabalhadores Seja Companheiro, faça sua doação ao PT de Ribeirão Preto

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