Querer não é poder: do Encantado à realidade.
Arte: Ana Favaretto
Eu sou grato à vida. Não pelo que eu imaginava
ter, porque sempre pensei muito grande, mas por ter tido muito mais do que as
pessoas que saem do lugar de onde saí conseguem ter. Não falo de dinheiro ou
vida confortável, porque isso implica até uma estratégia: viver no interior é
mais fácil e mais barato, e isso pode facilitar a mobilidade social.
Sentir-me realizado não tem nada que ver com
ganhar dinheiro, mas com a realização dos meus sonhos mais profundos, mais
íntegros, isto é, aqueles que não foram afetados e maculados, na idade adulta.
Quando se pergunta a uma criança o que ela quer ser quando crescer, jamais se
ouve, como resposta, que ela quer ser uma consumidora de roupas caras, ou uma
pessoa que tenha o carro mais novo do que o do seu vizinho. Em geral, a criança
responde com o nome de uma profissão: professor, bombeiro, médica, engenheira;
eu, por exemplo, queria ser palhaço.
Minha gratidão advém do fato de eu ter
conseguido fazer o que eu quis, como eu quis: a minha música; ter meu estúdio e
meus instrumentos; lançar 12 álbuns e 18 livros; fazer faculdade de música e
ainda me doutorar na USP, com estudos sobre a canção de consumo.
Claro que continuarei produzindo, mas, se hoje
fosse o fim da minha jornada terrestre, eu poderia dizer, sem margens para
dúvidas, que pouquíssimas pessoas que tiveram como ponto de partida o
Encantado, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, chegaram aonde eu consegui
chegar.
Antes de ser celebração, essa é uma triste
constatação, pois há um esforço estrutural para que não consigamos nos mover
socialmente. Eu ter conseguido furar essa bolha do mal não é, nem de longe,
garantia de que muitos outros conseguirão. A meritocracia é o engodo que serve
à edulcoração da desigualdade social.
Por isso, quando algum livro de autoajuda, ou
algum coach, instar sua vontade com a máxima “querer é poder”,
desconfie e questione, pois não basta o querer, pois quem dá o poder
na sociedade capitalista é o dinheiro.
Vejam bem: o dever, o querer, o saber
e o poder são os elementos que nos qualificam para realizar alguma
coisa. Reparem que quando devemos, queremos, sabemos ou podemos
fazer alguma coisa, ainda não estamos fazendo nada, pois são exatamente esses
elementos que nos preparam, como sujeitos da sociedade, isto é, como cidadãos,
para fazer alguma coisa.
Portanto, querer não é poder fazer,
pois você pode querer, poder, mas não saber, ou mesmo não dever
fazer alguma coisa. Mas, para poder mudar a forma desigual com que
nos relacionamos na sociedade capitalista, nós temos de querer mudar. Podemos
mudar porque somos sujeitos da história, isto é, historicamente, tudo aquilo
que foi criado pelo homem pode ser modificado pelo homem. No entanto, temos de
aprender a como fazer. Temos de saber mudar, e, para isso, temos de
investigar: Isso é possível mesmo? Algum povo já fez uma mudança tão radical?
Então, vamos estudar o que esses povos fizeram; quais foram suas soluções; o
que eles deixaram registrado etc. Assim, atingiremos o estágio do saber
fazer.
Não há dúvida alguma que devamos lutar
pela mudança, porque temos a obrigação de lutar por uma vida melhor, pois não é
possível que tenhamos sido colocados nesse mundo para que apenas soframos.
Sendo assim, fica claro que devemos buscar
o bem-estar individual e social. Todavia, o dever nem sempre leva ao querer.
Todos sabemos que devemos lutar, mas muitos não o querem, mesmo
no sofrimento da fome, do subemprego, da exploração, da violência policial, do
racismo estrutural, do machismo, da homofobia, da misoginia, isto é, mesmo devendo,
não querem saber como fazer para poder modificar sua vida.
Esse é um nó que nós, progressistas, ainda não aprendemos a desatar.
Limitamo-nos a dizer que, para esses, falta consciência política ou de classe.
Socorra-nos, Paulo Freire!
Márcio Coelho é Secretário de Cultura do PT de Ribeirão Preto
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