Márcio Coelho: Tempo Não é dinheiro!
Ilustração: Ana Favaretto
Certamente, se não a totalidade, muitos de vocês já escutaram, absorveram, utilizaram e ajudaram a disseminar o termo “tempo é dinheiro”, sem sequer pensar, de maneira um pouco mais profunda, sobre sua origem e seu real significado.
Tal expressão tem origem no seguinte enunciado: “Tempo custa muito caro”, cunhado pelo pensador grego Teofrasto (372 a.C a 288 a.C), em umas das suas 200 obras, divididas em 500 volumes.
Após ler a obra do pensador grego, o filósofo maçom estadunidense Benjamim Franklin (1706 a 1790) chegou à conclusão de que “tempo é dinheiro”.
Tal frase carrega em seu bojo a ideia de que, quando não estamos produzindo para ser recompensados, estamos deixando de ganhar, portanto, perdendo dinheiro. Para quem compactua com essa ideia, o dinheiro é a recompensa máxima que um ser humano pode alcançar.
É certo que a grande maioria das pessoas troca seu tempo por dinheiro. Especialistas chegam a afirmar que atualmente a riqueza é expressa em “tempo” e não mais monetariamente, isto é, se você parar de trabalhar, você não conseguirá manter seu padrão de vida por muito tempo.
Do meu ponto de vista, a expressão “padrão de vida” está intimamente ligada a coisas desimportantes para a sobrevivência, como carro zero ou de luxo, smartphone de última geração, roupas de marcas e toda a sorte de produto dos quais não precisamos para realmente viver bem.
José Mujica ilustra bem o que fazemos com nosso tempo, na contemporaneidade:
“Inventamos uma montanha de consumo supérfluo, e é preciso jogar fora e viver comprando e jogando fora. E o que estamos gastando é tempo de vida. Porque quando eu compro algo, ou você, não compramos com dinheiro, compramos com o tempo de vida que tivemos de gastar para ter esse dinheiro. Mas com esta diferença: a única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta. E é miserável gastar a vida para perder liberdade”.
Portanto, segundo Pepe Mujica, comprar algo caro sem necessidade é como jogar fora tempo de vida, como doar nossa vida em troca de consumo.
Não era à toa que S. Tomás de Aquino já criticava a agiotagem pela cobrança do tempo, que, segundo seu ponto de vista, é de Deus. Se o tempo é de Deus, não se pode cobrar pelo tempo de um empréstimo. Ou não é pelo tempo de espera para receber a devolução do empréstimo que os bancos cobram, quando tomamos R$ 1.000,00 emprestados e, ao fim de 30 dias, temos de devolvê-los com o acréscimo de 10%?
Numa perspectiva humanista e em diametral contraposição ao enunciado de Benjamim Franklin, Antônio Cândido afirma que o tempo é o tecido da vida.
“(...) Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo. E justamente a luta pela instrução do trabalhador é a luta pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’. As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada”.
Do enunciado de Antônio Cândido, destaco sua concepção de que investir na instrução do trabalhador é tanto lhe dar a oportunidade de ter tempo para fruir o que realmente vale a pena na vida como possibilitá-lo fruir coisas que escapam à sua compreensão.
De Aristóteles a Domenico de Masi, passando por Jean Jacques Rousseau, vários pensadores nos informam que o ser humano só trabalha para usufruir o ócio. Ócio que, além de ser o lugar onde a vida acontece em sua plenitude, também é fundamental para a criatividade, como nos mostra o físico quântico Amit Goswami:
“O processo criativo tem quatro estágios: preparação, incubação, insight e manifestação. A preparação consiste em rever o que é conhecido, organizando o trabalho de base para o insight criativo. A incubação é o processo inconsciente – o processamento sem ajuda da percepção. Enquanto a preparação envolve esforço, o processamento inconsciente ocorre sem esforço consciente, mas não é sono. Esses dois estágios se entrecruzam, alternando esforço e relaxamento – alternando o fazer e o não fazer, se o leitor preferir. O insight é o surgimento da nova ideia, a mudança de contexto. É um salto quântico do pensamento – uma transição descontínua do pensamento, sem a passagem pelos estágios intermediários. A manifestação consiste em produzir a transformação exigida pelo insight”.
Não é difícil perceber que não fazer alguma coisa é condição sine qua non para o afloramento da criatividade. É com a mente relaxada que o insight ocorrerá. Desse modo, fica claro que o trabalho contínuo, sem descanso, em lugar de compensar o trabalhador desqualifica-o para a criatividade.
A filósofa Marilena Chauí nos alerta para o fato de que “a cultura é a nossa possibilidade de nos relacionarmos com a ausência. Daí, a dimensão simbólica da cultura”. Questões como essas são filosóficas, mas nos ajudam a entender a vida. Quem nos proporciona entender tudo isso é a cultura, por meio do ausente, ou seja, o simbólico.
A cultura nos possibilitou a criação do tempo, que é uma noção estritamente cultural, inclusive, numa visão marxista, segundo José Paulo Neto: “é o depois que explica o antes”. O polegar opositor explica a evolução, mas não é o estudo dos símios que nos permite entender o homem, e, sim, estudar o homem explica a evolução dos símios. Isso só pode ser feito por meio da cultura.
Se o tempo é o tecido da vida, quem costurou esse tecido foi a cultura. A esse respeito e a respeito de como tratamos o tempo na contemporaneidade o filósofo indígena Ailton Krenak vaticina, em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”:
“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir de nossos próprios sonhos. E minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo”.
Atualmente, vivemos o não tempo e não espaço. Tudo parece estar disponível o tempo todo, e ao mesmo tempo, não disponibilizado para todos. Onde vai dar essa atopia e essa acronia é o desafio atual de quem espera que a vida deva se envolver no tecido cultural do prazer.
---Márcio Coelho é Secretário de Cultura do PT de Ribeirão Preto
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