Márcio Coelho: O racismo é normal?

Ilustração: Ana Favaretto

Márcio Coelho: O racismo é normal?

 

Sempre que ouvi o termo “minoria”, no que concerne, principalmente, à raça e gênero, senti certo incômodo, pois sabemos que há mais negros do que brancos no Brasil, assim como há mais mulheres do que homens. 


A filósofa Marilena Chauí, numa palestra que cito de memória, deixou claro que, quando nos referimos a “minorias raciais” ou a qualquer “minoria”, não estamos fazendo referência quantitativa e, sim, qualitativa. Explico: O termo minoridade – ou menoridade – se refere a quem tem menos de 18 anos, portanto, a quem ainda não é civilmente capaz; a pessoas que, perante a lei, ainda não são responsáveis por todos os seus atos, isto é, pessoas que necessitam de que outros agentes sociais interfiram em seu favor. 


A confusão surge porque o termo minoria pode se referir tanto à “porção menor ou menos representativa de um todo” (quantidade) quanto às pessoas civilmente incapazes (qualidade), ou seja, minoria é sinônimo de menoridade ou minoridade.

 

Desse modo, podemos concluir que o sentido principal de minorias, do ponto de vista sociológico, está relacionado à ausência de emancipação, isto é, do direito de se colocar como sujeito social, tal como acontece com um menor de 18 anos, que necessita de que alguém lhe dê voz perante a sociedade. No entanto, muitas vezes, como no caso dos indígenas, o termo minoria pode ter o sentido tanto qualitativo como quantitativo. 


Antes de tocar no principal tema do presente artigo, é importante definirmos racismo e diferenciarmos preconceito racial de discriminação racial, afinal, é dessa maneira que o racismo estrutural se manifesta na sociedade. 


Sílvio de Almeida deixa claro, no início de Racismo Estrutural, que o racismo manifesta a norma de uma sociedade, portanto, não se trata de uma patologia ou anormalidade. Assim, o autor define racismo:

 

Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam. (Almeida, 2020, p. 22)

 

Todos nos acostumamos a tratar preconceito e discriminação racial como expressões variantes de um mesmo sentido, todavia, de maneira simples e sagaz, Sílvio de Almeida nos mostra a sutil diferença entre os termos e suas consequências, quando afirma que “o preconceito racial é o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado”. Considerar negros violentos, judeus avarentos ou orientais mais aptos para as ciências exatas são manifestações do preconceito arraigado em nossa sociedade, que só se transfigura em discriminação quando se atribui “tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados”. É importante ressaltar que é possível se falar em discriminação racial positiva, como é o caso da aplicação de políticas afirmativas como as cotas para estudantes negros e indígenas, nas universidades públicas.    

 

A concepção individualista do racismo carrega em seu bojo inúmeros problemas. O primeiro deles é exatamente conceber o racismo como se fosse o acometimento de uma doença mental, isto é, de uma anormalidade na formação psicológica do indivíduo. Tal concepção nos leva a compreender o racismo como “uma “irracionalidade” a ser combatida no campo jurídico por meio da aplicação de sanções civis –indenizações, por exemplo – ou penais". No entanto, o maior prejuízo social da concepção individualista diz respeito ao fato de ela permitir que, em sendo aceita como verdade, não admita “a existência de “racismo”, mas somente de “preconceito”, a fim de ressaltar a natureza psicológica do fenômeno em detrimento de sua natureza política.


Embora se utilize indistintamente os termos racismo institucional e racismo e racismo estrutural, o empenho do autor nessa empreitada objetiva deixar claro a distinção entre esses dois fenômenos racistas.

 

Segundo Joachim Hirsch, convocado por almeida, instituições são “modos de orientação, rotinização e coordenação de comportamentos que tanto orientam a ação social como a torna normalmente possível, proporcionando relativa estabilidade aos sistemas sociais”.

       

O estabelecimento da concepção institucional do racismo é considerado por Sílvio de Almeida um importante avanço teórico no que diz respeito ao estudo das relações raciais, pois, tal perspectiva esclarece que o racismo não se resume a comportamentos individuais, é, na verdade, resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar, segundo o autor, “em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça”.

 

Sílvio de Almeida esclarece que racismo é uma forma de exercício de poder e sua configuração institucional não se resume ao fato de que as instituições são um espelho das relações sociais.

 

No caso do racismo institucional, o domínio se dá com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-se o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade. Assim, o domínio de homens brancos em instituições públicas – o legislativo, o judiciário, o ministério público, reitorias de universidades etc. – e instituições privadas – por exemplo, diretoria de empresas – depende, em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres, e, em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado por homens brancos. (Almeida, 2020, pp. 27-28).

 

Verificamos que a concepção institucional de racismo compreende o poder como elemento fundamental na relação racial, pois, no fundo, racismo é dominação. Embora não seja a solução definitiva, tratar da concepção institucional do racismo já é um avanço em relação à sua abordagem puramente comportamental, pois sabemos que para a manutenção da hegemonia de um grupo racial sobre outro é necessário que, além da prerrogativa da violência, inerente a quem detém o poder, o grupo dominante assegure o controle das instituições, local onde também se assenta a única possibilidade de, paulatinamente, se engendrar uma democracia racial consciente e verdadeira.

 

Em uma sociedade em que o racismo está presente na vida cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como “normais” em toda a sociedade”. (Almeida, 2020, p. 31).

 

Sendo assim, se nada for feito, toda instituição será – ou continuará sendo – um vetor de privilégios e violências racistas, dentre outras violências sociais.

       

O autor conclui que, sendo o racismo inerente à ordem social, é necessário que seja combatido por meio de implementação de práticas antirracistas:

 

É dever de uma instituição que realmente se preocupe com a questão racial investir na adoção de políticas internas que visem: a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo – por exemplo, na publicidade; b) remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de direção e de prestígio na instituição; c) manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais; d) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero. (Almeida, 2020, p. 32).

 

Almeida nos dá ciência de que toda instituição está condicionada um uma estrutura social previamente existente, desse modo, o racismo expresso pelas instituições, manifestado individualmente, é parte dessa mesma estrutura. Donde podemos concluir que o racismo individual é a superfície do racismo institucional, que, por sua vez, finca raízes na estrutura social, que é racista, pois “o racismo é parte da ordem social. Não é algo criado pela instituição, mas é por ela reproduzido”.

 

Segundo o autor, o racismo não é senão uma decorrência do esqueleto, da estrutura, na norma social constituída pelas relações políticas, econômicas, jurídicas, culturais, portanto, não é uma anomalia social, muito menos um transtorno institucional, o racismo é estrutural, e atua em nível muito mais profundo do que o das relações institucionais e das manifestações individuais.

 

 

ALMEIDA, Silvio Luiz de. “Introdução” e “Raça e história”. In: ____. Racismo
estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020, (Feminismos Plurais),
p. 20- 57.
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Márcio Coelho é Secretário de Cultura do PT de Ribeirão Preto Seja Companheiro, faça sua doação ao PT de Ribeirão Preto

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