Márcio Coelho: Abismo Bolsonariano e As Raízes do Brasil
Ilustração: Ana Favaretto
Atualmente, vivemos, no Brasil, a exacerbação do que seja patrimonialismo. O presidente Bolsonaro e seus filhos não fazem a menor questão de manter a distância entre sua família e o Estado. Desse ponto de vista, o governo brasileiro remonta ao Estado romântico do século XIX, quando reinou a indistinção entre círculo familiar e Estado, sem que se respeitasse a essência da relação Estado/núcleo familiar, que se caracteriza por absoluta descontinuidade, e até por oposição, em lugar da gradação, ou mesmo da maléfica amálgama escancarada hodiernamente pela mídia hegemônica, também pela alternativa. O governo de Jair Bolsonaro servirá, nos anos vindouros, para que exemplifiquemos o modo como agentes públicos não devem agir, mormente aquele que ocupa o posto mais alto da República. Remetamo-nos às raízes patrimonialistas do Brasil.
Sérgio Buarque de Holanda deixa evidente, em Raízes do Brasil, que os núcleos familiares rurais brasileiros do século VIII eram verdadeiras autarquias, nas quais nada faltava e tudo funcionava, diferentemente do que acontecia nos próprios públicos e com a gente comum. Não à toa, Holanda nos presenteia com anedota contada por frei Vicente do Salvador, que narra a seguinte observação feita por certo bispo de Tucumã, da Ordem de São Domingos:
“Então o disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa.”
Todavia, esse tipo de configuração dos núcleos familiares não só eram nocivos ao desenvolvimento dos jovens, como o eram para a ordem geral, fato que Sérgio Buarque de Holanda deixa claro, no seguinte trecho:
“Dos vários setores de nossa sociedade colonial, foi sem dúvida a esfera da vida doméstica aquela onde o princípio de autoridade menos acessível se mostrou as forças corrosivas que de todos os lados o atacavam. Sempre imerso em si mesmo, não tolerando nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantem-se imune de qualquer restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio superior que procure perturbá-lo ou oprimi-lo. Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania. Não são raros os casos como o de um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a à morte em conselho de família e manda executar a sentença, sem que a Justiça de um único passo no sentido de impedir o homicídio ou de castigar o culpado, a despeito de toda a publicidade que deu ao fato o próprio criminoso.
O que vemos acontecer atualmente é que a nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevaleciam necessariamente as preferencias fundadas em laços afetivos, deixaram marcas profundas na nossa sociedade, na nossa vida pública, em todas as nossas atividades, como demonstra a governo Bolsonaro.
Importante destacar que tal procedimento patrimonialista, que também tinha a família como modelo para o Estado em formação, não só era aceito como era estimulado; a seguinte afirmação de Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, não deixa dúvidas em relação a isso:
“O primeiro princípio da economia política”, exclama, “é que o soberano de cada nação deve considerar-se como chefe ou cabeça de uma vasta família, e consequentemente amparar a todos que nela estão, como seus filhos e cooperadores da geral felicidade...” “Quanto mais o governo civil se aproxima a este caráter paternal”, diz ainda, “e forceja por realizar essa ficção generosa e filantrópica, tanto ele é mais justo e poderoso, sendo então a obediência a mais voluntária e cordial, e a satisfação dos povos a mais sincera e indefinida.
Não há dúvida de que a educação e a vida familiar não são senão uma etapa introdutória na vida do ser humano. O autor de Raízes do Brasil afirma que as modernas teorias, cada vez mais, separaram o indivíduo da comunidade doméstica, liberta-o, por assim dizer, das “virtudes” familiares. Assim, conclui seu pensamento:
“A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade.
Conclusão, Bolsonaro age como um autêntico representante da “elite do atraso”, que, de maneira sórdida, incompassiva e vampiresca usufrui as delícias da vida burguesa, às custas do suor do trabalhador.
Cumpre destacar que se trata de um representante menor, subalterno, como um capitão do mato, não como um exemplar dessa elite que, há mais de cinco séculos, não faz senão refrear o processo de dignificação do nosso país. Mas há saída, pois nosso destino grandioso e socialmente justo não cabe no abismo bolsonariano.
---Márcio Coelho é Secretário de Cultura do PT de Ribeirão Preto
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