Habitus
Ana Favaretto
Este e outros artigos que escreverei sobre os conceitos forjados pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu são partes da dissertação “EGRESSOS DO PROGRAMA RIBEIRÃO CRIANÇA (SP): capital cultural, mudança de habitus e mobilidade social”, apresentada à Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, Brasil, no âmbito do curso “Maestría Estado, Gobierno Y Políticas Públicas”, em parceria com a Fundação Perseu Abramo. Veja todos em: https://redept.org/artigos/Mrcio-Coelho
Os conceitos de campo, campo social e habitus são de fundamental importância para a compreensão da obra de Pierre Bourdieu. Não por acaso iniciei esse elucidário com a noção de campo social. A seguir, examinaremos a noção de habitus.
Em uma determinada estrutura
de classe, as posições dos agentes sociais produzem sistemas de disposições
chamados por Bourdieu de habitus. Tais sistemas são manifestados por
meio de preferências e práticas, que exprimem posições e classes. Entretanto,
muita coisa está em jogo quando falamos de “sistemas de disposições”, como: Que
disposições são essas? O habitus é mutável? Quem ou o que determina
nosso habitus? Habitus é um conceito absoluto ou relativo?
É natural que confundamos o conceito bourdieusiano de habitus com
o de hábito. No entanto, elas guardam pouca relação, a não ser no que concerne
à causa e consequência, isto é, nosso hábito é consequência de um habitus.
É sabido que Pierre Bourdieu foi uma pessoa de origem simples e agrária.
Clóvis de Barros Filho, que foi seu aluno, nos conta que sua maneira de
escrever, empolada e de difícil penetração, é resultado de sua revolta por ter
sofrido bullying quando chegou a Paris, não só por causa da sua origem,
mas também pelo seu sotaque “caipira”.
O Vocabulário Bourdieu busca amenizar tal dificuldade de penetração na
linguagem bourdieusiana, no entanto, mesmo assim, considero, como se poderá ver
a seguir, que apenas com a leitura de seus verbetes as noções engendradas pelo
sociólogo francês ainda mantêm um grau muito alto de impenetrabilidade.
A seguir, excertos do verbete habitus, do Vocabulário Bourdieu.
Comecemos pela origem do termo:
Habitus é uma noção
filosófica antiga, originária no pensamento de Aristóteles e na Escolástica
medieval, que foi recuperada e retrabalhada depois dos anos 1960 por Pierre
Bourdieu para forjar uma teoria disposicional da ação. (...) As raízes do
habitus encontram-se na noção aristotélica de hexis, elaborada na sua
doutrina sobre a virtude, significando um estado adquirido e firmemente
estabelecido do caráter moral que orienta os nossos sentimentos e desejos
numa situação e, como tal, a nossa conduta (Catani, 2017, p. 213). |
Segundo o vocabulário
Bourdieu, a noção de habitus foi usada parcimoniosa e descritivamente
por sociólogos da geração clássica como Emile Durkheim e Marcel Mauss, assim
como por Max Weber, Thorstein Veblen e Edmund Husserl, que designava por habitus
a conduta mental entre experiências passadas e ações vindouras, uma noção que
se assemelha com a de hábito, generalizada por Maurice Merleau-Ponty. Outros
pensadores também lançaram mão da noção,
mas é no trabalho de Pierre Bourdieu, que
estava profundamente envolvido nesses debates filosóficos, que encontramos a
mais completa renovação sociológica do conceito delineado para transcender a
oposição entre objetivismo e subjetivismo: o habitus é uma noção mediadora
que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade
ao captar “a interiorização da exterioridade e a exteriorização da
interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas
pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e
propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que
então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e
solicitações do seu meio social existente. (...) Bourdieu propõe que a
pratica não é nem o precipitado mecânico de ditames estruturais, nem o
resultado da perseguição intencional de objetivos pelos indivíduos; é, antes,
“o produto de uma relação dialética entre a situação e o habitus, entendido
como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas
as experiências passadas, funciona em cada momento como uma matriz de
percepções, apreciações e ações e torna possível cumprir tarefas
infinitamente diferenciadas graças à transferência analógica de esquemas”
adquiridos numa prática anterior (Catani, 2017, p. 214). |
Nesse excerto do verbete habitus,
os autores já deixam transparecer aquilo que mais tarde veremos de maneira
definitiva, isto é, a relação entre indivíduo e sociedade na qual seu habitus
é estruturado pelas relações sociais e seu comportamento - ou seria seu hábito?
– ajuda a estruturar o habitus coletivo, daí “a interiorização da
exterioridade e a exteriorização da interioridade”, o rompimento do senso comum
em relação à individualidade e objetividade, concluindo que as experiências
passadas, na forma de habitus, funcionam como fontes da percepções,
apreciações e ações individuais.
O verbete segue:
Como história individual e grupal sedimentada
no corpo, estrutura social tornada estrutura mental, o habitus pode ser
pensado em analogia com a “gramática generativa” de Noam Chomsky, que permite
aos falantes proficientes de uma dada língua produzir impensadamente atos de
discurso corretos de acordo com regras partilhadas de um modo inventivo, mas,
não obstante, previsível (Catani, 2017, p. 214). |
A Gramática Gerativa - ou
Generativa - de Noam Chomsky trata da competência linguística, isto é, da
capacidade criativa dos falantes de formular e compreender frases inéditas. Grosso
modo, a competência linguística é a capacidade do ser humano de aprender,
não só a língua, mas também sua estrutura, de modo intuitivo. Ela explica a
capacidade do ser humano de aprender qualquer língua natural, mesmo que tenha
tido origem em outra cultura, por exemplo: uma criança pode ser nascida no
Brasil, mas, se antes mesmo de aprender a falar, for viver, digamos, na China,
não terá dificuldade para aprender a falar mandarim.
Embora
o Vocabulário Bourdieu faça essa aproximação, seus autores deixam claro que que
Chomsky designa uma competência prática, adquirida na e para a ação, operando
no nível da consciência. Entretanto, ao contrário da gramática de Chomsky, o
habitus
(i)
resume não uma aptidão natural, mas social
que é, por esta mesma razão, variável através do tempo, do lugar e,
sobretudo, através das distribuições de poder; (ii)
é transferível para vários domínios de
prática, o que explica a coerência que se verifica, por exemplo, entre vários
domínios de consumo - música, desporto, alimentação, mobília e, também, nas
escolhas políticas e matrimoniais - no interior e entre indivíduos da mesma
classe e que fundamenta os distintos estilos de Vida (LDi); (iii)
é durável, mas não estático ou eterno: as
disposições são socialmente montadas e podem ser corroídas, contrariadas ou
mesmo desmanteladas pela exposição a novas forças externas, como demonstrado,
por exemplo, a propósito de situações de migração; (iv)
contudo, é dotado de inércia incorporada, na
medida em que o habitus tende a produzir práticas moldadas depois das
estruturas sociais que as geraram e na medida em que cada uma das suas
camadas opera como um prisma através do qual as últimas experiências são
filtradas e os subsequentes estratos de disposições são sobrepostos (daí o
peso desproporcionado dos esquemas implantados na infância); (v)
introduz um desfasamento e, por vezes, um hiato
entre as determinações passadas que o produziram e as determinações atuais
que o interpelam: como “história tornada natureza”, o habitus “é aquilo que
confere ‘às práticas a sua relativa autonomia no que diz respeito as
determinações externas do presente imediato. Esta autonomia é a do passado,
ordenado e atuante que, funcionando como capital acumulado, produz história
na base da história e, assim, assegura que a permanência no interior da
mudança faça do agente individual um mundo no interior do mundo” (Catani,
2017, pp. 214-215). |
Segundo o Vocabulário
Bourdieu, o habitus nos oferece princípios sociais e individuais.
Sociais por meio da nossa capacidade de apreciação e julgamento, também de
ação, como já vimos até aqui, advindas da sociedade e partilhadas por agentes
submetidos a condições e condicionamentos similares, por isso, podemos falar de
habitus masculino, habitus nacional, habitus burguês etc. Individuais
“porque cada pessoa, ao ter uma trajetória e uma localização únicas no mundo,
internaliza uma combinação incomparável de esquemas” (Catani, 2017, p. 215).
Porque é simultaneamente estruturado (por
meios sociais passados) e estruturante (de ações e representações presentes),
o habitus opera como o “princípio não escolhido de todas as escolhas” guiando
ações que assumem o caráter sistemático de estratégias mesmo que não sejam o
resultado de intenção estratégica e sejam objetivamente “orquestradas sem
serem o produto da atividade organizadora de um maestro (SP1, 256). (Catani,
2017, p. 215). |
Tudo isso posto, convocarei o professor Clóvis de Barros Filho e o curso
Meditações Pascalianas, segundo os quais habitus é um conjunto de disposições para
agir, socialmente explicáveis, socialmente construídas, e que não passam pela
consciência de quem age. Isso é perceptível quando respeitamos as regras
sociais sem precisar pensar em respeitar as regras sociais, isto é, quando agimos
de acordo sem precisar pensar.
Segundo Barros Filho, costumamos “biologizar” as coisas das quais não
conhecemos a origem. E quase tudo o que
não sabemos de onde vem geralmente da sociedade na qual estamos inseridos, isto
é, dos espaços abstratos onde convivemos. Por isso, a determinação de nossas
posições, de nossas práticas e gostos, a partir da leitura de Bourdieu, desloca
a percepção social do âmbito biológico para o âmbito sociológico, assim o
professor ironiza tal fenômeno: “No lugar de ‘sangue azul’, de convivência azul
– ‘logo se vê que é filho de um Almeida Prado’ -, é o habitus que faz
agir sem pensar em nada”. Um tenista não
pensa para jogar, um violonista não pensa para tocar, um dançarino não pensa
para dançar. Portanto, habitus é a atualização, isto é, a tradução em
ato de saberes práticos incorporados ao longo de uma trajetória.
O tipo de ritmo de vida é o maior exemplo de atributo de habitus.
Não é comum prestarmos atenção na cadência de vida, só o fazemos quando há
falta. Sentimo-nos bem quando o nosso jeito de ser coincide com o de outras
pessoas. É aí que o habitus de “Gavião da Fiel se torna sangue de gavião,
arremata o professor jocosamente.
Haverá tantos habitus quanto os campos que considerarmos. A
sociedade é feita de habitus social.
O professor Fábio Rodrigues da Silva, no curso “Breve Introdução ao Pensamento de
Pierre Bourdieu”, aborda outros importantes aspectos do habitus:
Os habitus são princípios geradores de
práticas distintas e distintivas – o que o operário come, e sobretudo sua
maneira de comer – (...) Mas são também esquemas classificatórios, princípios
de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes”. (Bourdieu,
apud, Fabio da Silva)[1]. |
Quando Bourdieu fala em
“esquemas classificatórios”, ele nos informa que, com esse tipo de dado
comportamental, você pode classificar as pessoas. Nós vemos a sociedade de
certa perspectiva e a dividimos a partir dessa perspectiva, portanto, de acordo
com cada habitus, nossa classificação pode mudar. Segundo Fábio da
Silva, “habitus é o jeito que fazemos tudo, em todos os âmbitos, ou
seja, nossas disposições”.
Já dissemos antes que o habitus
não é imutável, nem absoluto. De acordo com o professor, quem tem disposições para duas posições
diferentes é possuidor de um habitus clivado[2].
Fábio
da Silva também chama a atenção para o habitus dechiré[3],
que é quando alguém é obrigado, por vários motivos a se comportar de maneira
diferente do que sugere seu habitus; por exemplo: Um operário colocado
na posição de comando tem simpatia por sua classe, mas tem de se comportar como
membro de classe mais alta ou patronal. Isso pode gerar vários problemas, dentre
eles, o “rasgamento do habitus”. Do mesmo modo, um fazendeiro tradicional que
não se adaptou à modernidade do agronegócio, pode ver seu filho desistir de
herdar a fazenda, assim, ele terá seu habitus rasgado.
Segundo o
professor Fábio, a histerese[4]
entre campo e habitus acontece quando ocorre uma mudança no campo, ou
nas posições dentro de um campo, isto é, acontece quando agentes que têm certo habitus
não conseguem gerar disposições adequadas a essa mudança, por exemplo: Uma
família muito rica que perde seu poder econômico e deve de se adaptar a um nomo
modo de vida, mas não consegue. Assim como temos consciência de que o certo
seria mudar nossos hábitos de alimentação, entre outros, mas todos sabemos
também, mesmo que intuitivamente, que não é fácil mudar.
No modo bourdieusiano de pensar, a prática social é resultado
da relação entre habitus e campo. Em
decorrência dessa relação, o habitus contribui para determinar aquilo
que o determina, ou seja, a preservação do campo.
Examinando
o livro “Capital Cultural e Ensino de Arte”, da professora Janedalva Gondim,
compreendemos que, para Bourdieu, não podemos entender o habitus como
atitudes mecânicas dos indivíduos em um dado contexto. Na verdade, as ações
individuais requerem mediações mais amplas, inseridas no âmbito da ética. O habitus
age como um operador tácito ou “pré-reflexivo”, que “conforma e orienta a ação,
mas, na medida em que é produto das relações sociais, ele tende a assegurar a
reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendraram” (Gondim, 2017,
p. 15).
Assim, Bourdieu define o habitus como
sistema de disposição duráveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é,
como princípio operador e estruturador das práticas e das representações que
podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser o produto da
obediência a regras, objetivamente adaptadas, a seu fim, sem supor a intenção
consciente dos fins e do domínio expresso das operações necessárias para
atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação
organizadora de um regente (Bourdieu,
1994, pp. 60-61, apud Gondim, 2017). |
De acordo com Gondim, Bourdieu
compreende que cada classe de posições sociais corresponde a uma classe de habitus,
isto é, um conjunto de princípios de visão e de divisão, geradores e
classificatórios de práticas distintas pertencentes a um estilo de vida
De acordo com essa
compreensão, o habitus é visto como um princípio unificador e separador
de pessoas, bens, escolhas, consumos, práticas etc. Aquilo que comemos,
que bebemos, que escutamos, que vestimos que fazemos e como fazemos organizam
práticas diferentes que conferem distinção, que são princípios classificatórios
de gostos e estilos diferentes de vida, indicam habitus de classe (Gondim,
2017, p. 29). Assim, Janedalva Gondim, convocando Bourdieu, afirma que:
Ao serem percebidas
pelos agentes, por meio dos princípios da visão e de divisão engendrados por
diferentes habitus, as diferenças objetivamente inscritas nas condições de
existência sob a forma de sistemas de propriedades acabam se tornando também
diferenças simbólicas, ou seja, distinções (grifo meu). Então “o habitus é, com efeito,
princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo,
sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas. Na relação
entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, a capacidade de
produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e
de apreciar essas práticas e esses produtos (gostos), e que se constitui o
mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida” (grifo
meu) (Bourdieu, 2007a, p.162, apud Gondim, pp. 29) |
Seguindo essa lógica, podemos
compreender o espaço social como um espaço dos estilos de vida nos quais os
princípios de organização transformam práticas e modos de agir em signos
distintivos. Assim, o habitus estabelece, diante dos esquemas
classificatórios, aquilo que é requintado e o que é vulgar, de acordo com as
relações estabelecidas dado que “o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode
parecer distinto para um, pretencioso ou ostentatório para outro, e vulgar para
um terceiro” (Bourdieu, 1996, p.22 apud, Gondim, p. 29)
Economia das Trocas Linguísticas é um livro de Pierre
Bourdieu muito importante que, de certo modo, estimulou o surgimento Economia
das Trocas Simbólicas, que talvez seja o livro mais conhecido de Pierre
Bourdieu e, certamente, o mais importante para meus.
Em Economia das Trocas
Linguísticas, no que concerne a habitus, o autor afirma que tem uma forte crença de que as
instruções mais importantes para a determinação do habitus são transmitidas
sem a linguagem como mediadora e sem passar pela consciência, por meio de “sugestões
inscritas nos aspectos aparentemente mais insignificantes das coisas,
situações ou práticas da existência comum” (Bourdieu, 1982, p. 39).
Logo, a
modalidade das práticas, as maneiras de olhar, de se aprumar, de ficar em
silêncio, ou mesmo de falar ("olhares desaprovadores",
"tons" ou "ares de censura" etc.), são carregadas de
injunções tão poderosas e tão difíceis de revogar por serem silenciosas e
insidiosas, insistentes e insinuantes. (...) O poder de sugestão exercido
através das coisas e das pessoas é a condição de eficácia de todas as
espécies de poder simbólico capazes de se exercerem em seguida sobre um habitus predisposto a senti-las.
Por exemplo, ao anunciar à criança não o que ela deve fazer, por meio de
ordens, mas o que ela deve ser, tal poder sugestionante faz com que ela se
transforme duradouramente naquilo que deve ser. A relação entre duas pessoas
pode ser tal que basta que uma delas diga que está frio para que a outra
feche a janela. E, o que é ainda mais espantoso, basta a presença de uma
delas para impor à outra (sem haver sequer necessidade de assim o desejar, e
muito menos de ordenar) uma definição da situação e de si mesma (como se
estivesse intimidada, por exemplo) tanto mais absoluta e indiscutível por não
ter nem mesmo que se afirmar (Bourdieu, 1982, p. 39). |
No excerto acima, o sociólogo francês roça
um conceito que terá centralidade no presente trabalho, a saber, o poder
simbólico, mas especificamente, a violência simbólica. No entanto, antes de
Bourdieu abordar os aspectos simbólicos gerais da dominação humana, ele examina
como se dá a violência simbólica no âmbito das línguas naturais e, de maneira
perspicaz, deixa claro que os regionalismos verbais deixaram seu estatuto de
diferenciação do uso da língua comum e passam a ser relegados a um modo
desprestigiado do uso da língua. Afirma Bourdieu:
“tais
diferenças se encontram relegadas ao inferno dos regionalismos, das
‘expressões viciosas e dos erros de pronúncia’ que os professores corrigem.
Reduzidos ao estatuto de jargões idiomáticos ou vulgares, igualmente
impróprios em ocasiões oficiais, os usos populares da língua oficial sofrem uma sistemática desvalorização (Bourdieu,
1982, pp. 39-40)”. |
Como dito antes, segundo
Clóvis de Barros, “tenderemos
a ser feliz quando fizermos aquilo que se espera que façamos”, formulação
explicável de maneira mais densa, por Bourdieu:
A
lei que rege a relação entre as estruturas objetivas do campo (em particular,
a hierarquia objetiva dos graus de consagração) e as práticas por intermédio
do habitus – princípio gerador de estratégias inconscientes ou parcialmente
controladas tendentes a assegurar o ajustamento às estruturas de que é
produto tal princípio – constitui apenas um caso particular da lei que define
as relações entre as estruturas, o habitus
e a prática, e segundo a qual
as aspirações subjetivas tendem a ajustar-se às oportunidades objetivas
(Bourdieu, 2011, p. 160). |
As disposições resultantes
daquilo que Bourdieu chama de “habitus primário de classe” são
constituídas por meio da interiorização “de um sistema objetivamente selecionado de signos, índices e
sanções, nas palavras e nas condutas, de um sistema particular de estruturas
objetivas, com vistas a operar objetivamente, ou seja, mais inconsciente do que
conscientemente.
Embora estejamos quase no arremate deste artigo, creio que
valha a pena apresentar uma definição completa apresentada pelo próprio Pierre
Bourdieu, em Economia das Trocas Simbólicas:
O
princípio unificador e gerador de todas as práticas e, em particular, destas
orientações comumente descritas como “escolhas” da “vocação”, e muitas vezes
consideradas efeitos da “tomada de consciência”, não é outra coisa senão o
habitus, sistemas de disposições inconscientes que constitui o produto da
interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos
determinismos objetivos e de uma determinação, do futuro objetivo e das
esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras
objetivamente ajustadas às estruturas objetivas (Bourdieu, 2011, pp.
201-202). |
Esse excerto deixa claro que
Bourdieu rechaça a ideia de “talento”, “vocação”, “escolha” etc., que
configurariam aquilo que chamaríamos de “tomada de consciência”. Ao contrário,
o sociólogo francês afirma que tudo isso não são senão “disposições
inconscientes” resultantes da internalização de estruturas externas que determinam
“futuros” configurados externamente e resultam em “esperanças” subjetivas. Em
outras palavras, Bourdieu, afirma que essas estruturas externas (objetivas)
produzem práticas individuais (subjetivas) que não buscam senão o ajuste com as
estruturas sociais objetivas e pré-determinadas, e que nossas práticas
contribuem para a estruturação dessa conformação objetiva, daí o habitus ser
estruturado, mas também estruturante.
Habitus cultivado
De acordo com Bourdieu, a
escola, importante formadora de hábitos, promove aos seus frequentadores e
àqueles que de alguma forma sofrem sua influência não exatamente esquemas de
pensamento individuais e/ou individualizados, “mas uma disposição geral geradora
de esquemas particulares capazes de serem aplicados em campos diferentes do
pensamento e da ação, aos quais pode-se dar o nome de habitus cultivado.
Bourdieu lança mão das
ideias do historiador de artes Erwin Panofsky e nos mostra como o pensador
alemão relaciona, como não poderia deixar de ser, o habitus à cultura, e
como a escola é responsável por intervir de maneira quase violenta sobre o habitus.
(...) numa sociedade
em que a transmissão da cultura é monopolizada por uma escola, as afinidades
profundas que unem as obras humanas (e, evidentemente, as condutas e os
pensamentos) têm seu princípio na instituição escolar investida da função de
transmitir conscientemente e em certa medida inconscientemente, ou, de modo
mais preciso, de produzir indivíduos dotados do sistema de esquemas inconscientes
(ou profundamente internalizados), o qual constitui sua cultura, ou melhor,
seu habitus, ou seja, em suma, de transformar a herança coletiva em
inconsciente individual e comum: relacionar as obras de uma época com as
práticas da escola, é um dos meios de explicar, não só o que elas proclamam,
mas também o que elas traem, pelo fato de participarem da simbólica (sic) de
uma sociedade (Bourdieu, 2011, p. 346). |
Desse modo, ao empregar o
conceito de habitus para qualificar a cultura inculcada pela e na
escola, Panofsky deixa claro que a cultura “não é só um código comum, nem mesmo
um repertório comum de respostas a problemas comuns ou um grupo de esquemas de
pensamento particulares e particularizados”, acima de tudo, a cultura é “um
conjunto de esquemas fundamentais, previamente assimilados, a partir dos quais
se engendram, segundo uma arte da invenção semelhante à da escrita musical, uma
infinidade de esquemas particulares, diretamente aplicados a situações
particulares. É isso.
No próximo artigo, abordarei
a noção de capital, segundo Bourdieu.
Márcio Coelho é licenciado em música,
mestre e doutro em linguística, com mestrado internacional em Estado, Governo e
Políticas Públicas, pela FLACSO – Faculdade Latino-americana de Ciências
Sociais. Também é secretário setorial de cultura do PT de Ribeirão Preto.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=R5J-zXXOs conceitos de campo, campo social e habitus são de fundamental importância para a compreensão da obra de Pierre Bourdieu. Não por acaso iniciei esse elucidário com a noção de campo social. A seguir, examinaremos a noção de habitus.
Em uma determinada estrutura
de classe, as posições dos agentes sociais produzem sistemas de disposições
chamados por Bourdieu de habitus. Tais sistemas são manifestados por
meio de preferências e práticas, que exprimem posições e classes. Entretanto,
muita coisa está em jogo quando falamos de “sistemas de disposições”, como: Que
disposições são essas? O habitus é mutável? Quem ou o que determina
nosso habitus? Habitus é um conceito absoluto ou relativo?
É natural que confundamos o conceito bourdieusiano de habitus com
o de hábito. No entanto, elas guardam pouca relação, a não ser no que concerne
à causa e consequência, isto é, nosso hábito é consequência de um habitus.
É sabido que Pierre Bourdieu foi uma pessoa de origem simples e agrária.
Clóvis de Barros Filho, que foi seu aluno, nos conta que sua maneira de
escrever, empolada e de difícil penetração, é resultado de sua revolta por ter
sofrido bullying quando chegou a Paris, não só por causa da sua origem,
mas também pelo seu sotaque “caipira”.
O Vocabulário Bourdieu busca amenizar tal dificuldade de penetração na
linguagem bourdieusiana, no entanto, mesmo assim, considero, como se poderá ver
a seguir, que apenas com a leitura de seus verbetes as noções engendradas pelo
sociólogo francês ainda mantêm um grau muito alto de impenetrabilidade.
A seguir, excertos do verbete habitus, do Vocabulário Bourdieu.
Comecemos pela origem do termo:
Habitus é uma noção
filosófica antiga, originária no pensamento de Aristóteles e na Escolástica
medieval, que foi recuperada e retrabalhada depois dos anos 1960 por Pierre
Bourdieu para forjar uma teoria disposicional da ação. (...) As raízes do
habitus encontram-se na noção aristotélica de hexis, elaborada na sua
doutrina sobre a virtude, significando um estado adquirido e firmemente
estabelecido do caráter moral que orienta os nossos sentimentos e desejos
numa situação e, como tal, a nossa conduta (Catani, 2017, p. 213). |
Segundo o vocabulário
Bourdieu, a noção de habitus foi usada parcimoniosa e descritivamente
por sociólogos da geração clássica como Emile Durkheim e Marcel Mauss, assim
como por Max Weber, Thorstein Veblen e Edmund Husserl, que designava por habitus
a conduta mental entre experiências passadas e ações vindouras, uma noção que
se assemelha com a de hábito, generalizada por Maurice Merleau-Ponty. Outros
pensadores também lançaram mão da noção,
mas é no trabalho de Pierre Bourdieu, que
estava profundamente envolvido nesses debates filosóficos, que encontramos a
mais completa renovação sociológica do conceito delineado para transcender a
oposição entre objetivismo e subjetivismo: o habitus é uma noção mediadora
que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade
ao captar “a interiorização da exterioridade e a exteriorização da
interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas
pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e
propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que
então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e
solicitações do seu meio social existente. (...) Bourdieu propõe que a
pratica não é nem o precipitado mecânico de ditames estruturais, nem o
resultado da perseguição intencional de objetivos pelos indivíduos; é, antes,
“o produto de uma relação dialética entre a situação e o habitus, entendido
como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas
as experiências passadas, funciona em cada momento como uma matriz de
percepções, apreciações e ações e torna possível cumprir tarefas
infinitamente diferenciadas graças à transferência analógica de esquemas”
adquiridos numa prática anterior (Catani, 2017, p. 214). |
Nesse excerto do verbete habitus,
os autores já deixam transparecer aquilo que mais tarde veremos de maneira
definitiva, isto é, a relação entre indivíduo e sociedade na qual seu habitus
é estruturado pelas relações sociais e seu comportamento - ou seria seu hábito?
– ajuda a estruturar o habitus coletivo, daí “a interiorização da
exterioridade e a exteriorização da interioridade”, o rompimento do senso comum
em relação à individualidade e objetividade, concluindo que as experiências
passadas, na forma de habitus, funcionam como fontes da percepções,
apreciações e ações individuais.
O verbete segue:
Como história individual e grupal sedimentada
no corpo, estrutura social tornada estrutura mental, o habitus pode ser
pensado em analogia com a “gramática generativa” de Noam Chomsky, que permite
aos falantes proficientes de uma dada língua produzir impensadamente atos de
discurso corretos de acordo com regras partilhadas de um modo inventivo, mas,
não obstante, previsível (Catani, 2017, p. 214). |
A Gramática Gerativa - ou
Generativa - de Noam Chomsky trata da competência linguística, isto é, da
capacidade criativa dos falantes de formular e compreender frases inéditas. Grosso
modo, a competência linguística é a capacidade do ser humano de aprender,
não só a língua, mas também sua estrutura, de modo intuitivo. Ela explica a
capacidade do ser humano de aprender qualquer língua natural, mesmo que tenha
tido origem em outra cultura, por exemplo: uma criança pode ser nascida no
Brasil, mas, se antes mesmo de aprender a falar, for viver, digamos, na China,
não terá dificuldade para aprender a falar mandarim.
Embora
o Vocabulário Bourdieu faça essa aproximação, seus autores deixam claro que que
Chomsky designa uma competência prática, adquirida na e para a ação, operando
no nível da consciência. Entretanto, ao contrário da gramática de Chomsky, o
habitus
(i)
resume não uma aptidão natural, mas social
que é, por esta mesma razão, variável através do tempo, do lugar e,
sobretudo, através das distribuições de poder; (ii)
é transferível para vários domínios de
prática, o que explica a coerência que se verifica, por exemplo, entre vários
domínios de consumo - música, desporto, alimentação, mobília e, também, nas
escolhas políticas e matrimoniais - no interior e entre indivíduos da mesma
classe e que fundamenta os distintos estilos de Vida (LDi); (iii)
é durável, mas não estático ou eterno: as
disposições são socialmente montadas e podem ser corroídas, contrariadas ou
mesmo desmanteladas pela exposição a novas forças externas, como demonstrado,
por exemplo, a propósito de situações de migração; (iv)
contudo, é dotado de inércia incorporada, na
medida em que o habitus tende a produzir práticas moldadas depois das
estruturas sociais que as geraram e na medida em que cada uma das suas
camadas opera como um prisma através do qual as últimas experiências são
filtradas e os subsequentes estratos de disposições são sobrepostos (daí o
peso desproporcionado dos esquemas implantados na infância); (v)
introduz um desfasamento e, por vezes, um hiato
entre as determinações passadas que o produziram e as determinações atuais
que o interpelam: como “história tornada natureza”, o habitus “é aquilo que
confere ‘às práticas a sua relativa autonomia no que diz respeito as
determinações externas do presente imediato. Esta autonomia é a do passado,
ordenado e atuante que, funcionando como capital acumulado, produz história
na base da história e, assim, assegura que a permanência no interior da
mudança faça do agente individual um mundo no interior do mundo” (Catani,
2017, pp. 214-215). |
Segundo o Vocabulário
Bourdieu, o habitus nos oferece princípios sociais e individuais.
Sociais por meio da nossa capacidade de apreciação e julgamento, também de
ação, como já vimos até aqui, advindas da sociedade e partilhadas por agentes
submetidos a condições e condicionamentos similares, por isso, podemos falar de
habitus masculino, habitus nacional, habitus burguês etc. Individuais
“porque cada pessoa, ao ter uma trajetória e uma localização únicas no mundo,
internaliza uma combinação incomparável de esquemas” (Catani, 2017, p. 215).
Porque é simultaneamente estruturado (por
meios sociais passados) e estruturante (de ações e representações presentes),
o habitus opera como o “princípio não escolhido de todas as escolhas” guiando
ações que assumem o caráter sistemático de estratégias mesmo que não sejam o
resultado de intenção estratégica e sejam objetivamente “orquestradas sem
serem o produto da atividade organizadora de um maestro (SP1, 256). (Catani,
2017, p. 215). |
Tudo isso posto, convocarei o professor Clóvis de Barros Filho e o curso
Meditações Pascalianas, segundo os quais habitus é um conjunto de disposições para
agir, socialmente explicáveis, socialmente construídas, e que não passam pela
consciência de quem age. Isso é perceptível quando respeitamos as regras
sociais sem precisar pensar em respeitar as regras sociais, isto é, quando agimos
de acordo sem precisar pensar.
Segundo Barros Filho, costumamos “biologizar” as coisas das quais não
conhecemos a origem. E quase tudo o que
não sabemos de onde vem geralmente da sociedade na qual estamos inseridos, isto
é, dos espaços abstratos onde convivemos. Por isso, a determinação de nossas
posições, de nossas práticas e gostos, a partir da leitura de Bourdieu, desloca
a percepção social do âmbito biológico para o âmbito sociológico, assim o
professor ironiza tal fenômeno: “No lugar de ‘sangue azul’, de convivência azul
– ‘logo se vê que é filho de um Almeida Prado’ -, é o habitus que faz
agir sem pensar em nada”. Um tenista não
pensa para jogar, um violonista não pensa para tocar, um dançarino não pensa
para dançar. Portanto, habitus é a atualização, isto é, a tradução em
ato de saberes práticos incorporados ao longo de uma trajetória.
O tipo de ritmo de vida é o maior exemplo de atributo de habitus.
Não é comum prestarmos atenção na cadência de vida, só o fazemos quando há
falta. Sentimo-nos bem quando o nosso jeito de ser coincide com o de outras
pessoas. É aí que o habitus de “Gavião da Fiel se torna sangue de gavião,
arremata o professor jocosamente.
Haverá tantos habitus quanto os campos que considerarmos. A
sociedade é feita de habitus social.
O professor Fábio Rodrigues da Silva, no curso “Breve Introdução ao Pensamento de
Pierre Bourdieu”, aborda outros importantes aspectos do habitus:
Os habitus são princípios geradores de
práticas distintas e distintivas – o que o operário come, e sobretudo sua
maneira de comer – (...) Mas são também esquemas classificatórios, princípios
de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes”. (Bourdieu,
apud, Fabio da Silva)[1]. |
Quando Bourdieu fala em
“esquemas classificatórios”, ele nos informa que, com esse tipo de dado
comportamental, você pode classificar as pessoas. Nós vemos a sociedade de
certa perspectiva e a dividimos a partir dessa perspectiva, portanto, de acordo
com cada habitus, nossa classificação pode mudar. Segundo Fábio da
Silva, “habitus é o jeito que fazemos tudo, em todos os âmbitos, ou
seja, nossas disposições”.
Já dissemos antes que o habitus
não é imutável, nem absoluto. De acordo com o professor, quem tem disposições para duas posições
diferentes é possuidor de um habitus clivado[2].
Fábio
da Silva também chama a atenção para o habitus dechiré[3],
que é quando alguém é obrigado, por vários motivos a se comportar de maneira
diferente do que sugere seu habitus; por exemplo: Um operário colocado
na posição de comando tem simpatia por sua classe, mas tem de se comportar como
membro de classe mais alta ou patronal. Isso pode gerar vários problemas, dentre
eles, o “rasgamento do habitus”. Do mesmo modo, um fazendeiro tradicional que
não se adaptou à modernidade do agronegócio, pode ver seu filho desistir de
herdar a fazenda, assim, ele terá seu habitus rasgado.
Segundo o
professor Fábio, a histerese[4]
entre campo e habitus acontece quando ocorre uma mudança no campo, ou
nas posições dentro de um campo, isto é, acontece quando agentes que têm certo habitus
não conseguem gerar disposições adequadas a essa mudança, por exemplo: Uma
família muito rica que perde seu poder econômico e deve de se adaptar a um nomo
modo de vida, mas não consegue. Assim como temos consciência de que o certo
seria mudar nossos hábitos de alimentação, entre outros, mas todos sabemos
também, mesmo que intuitivamente, que não é fácil mudar.
No modo bourdieusiano de pensar, a prática social é resultado
da relação entre habitus e campo. Em
decorrência dessa relação, o habitus contribui para determinar aquilo
que o determina, ou seja, a preservação do campo.
Examinando
o livro “Capital Cultural e Ensino de Arte”, da professora Janedalva Gondim,
compreendemos que, para Bourdieu, não podemos entender o habitus como
atitudes mecânicas dos indivíduos em um dado contexto. Na verdade, as ações
individuais requerem mediações mais amplas, inseridas no âmbito da ética. O habitus
age como um operador tácito ou “pré-reflexivo”, que “conforma e orienta a ação,
mas, na medida em que é produto das relações sociais, ele tende a assegurar a
reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendraram” (Gondim, 2017,
p. 15).
Assim, Bourdieu define o habitus como
sistema de disposição duráveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é,
como princípio operador e estruturador das práticas e das representações que
podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser o produto da
obediência a regras, objetivamente adaptadas, a seu fim, sem supor a intenção
consciente dos fins e do domínio expresso das operações necessárias para
atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação
organizadora de um regente (Bourdieu,
1994, pp. 60-61, apud Gondim, 2017). |
De acordo com Gondim, Bourdieu
compreende que cada classe de posições sociais corresponde a uma classe de habitus,
isto é, um conjunto de princípios de visão e de divisão, geradores e
classificatórios de práticas distintas pertencentes a um estilo de vida
De acordo com essa
compreensão, o habitus é visto como um princípio unificador e separador
de pessoas, bens, escolhas, consumos, práticas etc. Aquilo que comemos,
que bebemos, que escutamos, que vestimos que fazemos e como fazemos organizam
práticas diferentes que conferem distinção, que são princípios classificatórios
de gostos e estilos diferentes de vida, indicam habitus de classe (Gondim,
2017, p. 29). Assim, Janedalva Gondim, convocando Bourdieu, afirma que:
Ao serem percebidas
pelos agentes, por meio dos princípios da visão e de divisão engendrados por
diferentes habitus, as diferenças objetivamente inscritas nas condições de
existência sob a forma de sistemas de propriedades acabam se tornando também
diferenças simbólicas, ou seja, distinções (grifo meu). Então “o habitus é, com efeito,
princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo,
sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas. Na relação
entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, a capacidade de
produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e
de apreciar essas práticas e esses produtos (gostos), e que se constitui o
mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida” (grifo
meu) (Bourdieu, 2007a, p.162, apud Gondim, pp. 29) |
Seguindo essa lógica, podemos
compreender o espaço social como um espaço dos estilos de vida nos quais os
princípios de organização transformam práticas e modos de agir em signos
distintivos. Assim, o habitus estabelece, diante dos esquemas
classificatórios, aquilo que é requintado e o que é vulgar, de acordo com as
relações estabelecidas dado que “o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode
parecer distinto para um, pretencioso ou ostentatório para outro, e vulgar para
um terceiro” (Bourdieu, 1996, p.22 apud, Gondim, p. 29)
Economia das Trocas Linguísticas é um livro de Pierre
Bourdieu muito importante que, de certo modo, estimulou o surgimento Economia
das Trocas Simbólicas, que talvez seja o livro mais conhecido de Pierre
Bourdieu e, certamente, o mais importante para meus.
Em Economia das Trocas
Linguísticas, no que concerne a habitus, o autor afirma que tem uma forte crença de que as
instruções mais importantes para a determinação do habitus são transmitidas
sem a linguagem como mediadora e sem passar pela consciência, por meio de “sugestões
inscritas nos aspectos aparentemente mais insignificantes das coisas,
situações ou práticas da existência comum” (Bourdieu, 1982, p. 39).
Logo, a
modalidade das práticas, as maneiras de olhar, de se aprumar, de ficar em
silêncio, ou mesmo de falar ("olhares desaprovadores",
"tons" ou "ares de censura" etc.), são carregadas de
injunções tão poderosas e tão difíceis de revogar por serem silenciosas e
insidiosas, insistentes e insinuantes. (...) O poder de sugestão exercido
através das coisas e das pessoas é a condição de eficácia de todas as
espécies de poder simbólico capazes de se exercerem em seguida sobre um habitus predisposto a senti-las.
Por exemplo, ao anunciar à criança não o que ela deve fazer, por meio de
ordens, mas o que ela deve ser, tal poder sugestionante faz com que ela se
transforme duradouramente naquilo que deve ser. A relação entre duas pessoas
pode ser tal que basta que uma delas diga que está frio para que a outra
feche a janela. E, o que é ainda mais espantoso, basta a presença de uma
delas para impor à outra (sem haver sequer necessidade de assim o desejar, e
muito menos de ordenar) uma definição da situação e de si mesma (como se
estivesse intimidada, por exemplo) tanto mais absoluta e indiscutível por não
ter nem mesmo que se afirmar (Bourdieu, 1982, p. 39). |
No excerto acima, o sociólogo francês roça
um conceito que terá centralidade no presente trabalho, a saber, o poder
simbólico, mas especificamente, a violência simbólica. No entanto, antes de
Bourdieu abordar os aspectos simbólicos gerais da dominação humana, ele examina
como se dá a violência simbólica no âmbito das línguas naturais e, de maneira
perspicaz, deixa claro que os regionalismos verbais deixaram seu estatuto de
diferenciação do uso da língua comum e passam a ser relegados a um modo
desprestigiado do uso da língua. Afirma Bourdieu:
“tais
diferenças se encontram relegadas ao inferno dos regionalismos, das
‘expressões viciosas e dos erros de pronúncia’ que os professores corrigem.
Reduzidos ao estatuto de jargões idiomáticos ou vulgares, igualmente
impróprios em ocasiões oficiais, os usos populares da língua oficial sofrem uma sistemática desvalorização (Bourdieu,
1982, pp. 39-40)”. |
Como dito antes, segundo
Clóvis de Barros, “tenderemos
a ser feliz quando fizermos aquilo que se espera que façamos”, formulação
explicável de maneira mais densa, por Bourdieu:
A
lei que rege a relação entre as estruturas objetivas do campo (em particular,
a hierarquia objetiva dos graus de consagração) e as práticas por intermédio
do habitus – princípio gerador de estratégias inconscientes ou parcialmente
controladas tendentes a assegurar o ajustamento às estruturas de que é
produto tal princípio – constitui apenas um caso particular da lei que define
as relações entre as estruturas, o habitus
e a prática, e segundo a qual
as aspirações subjetivas tendem a ajustar-se às oportunidades objetivas
(Bourdieu, 2011, p. 160). |
As disposições resultantes
daquilo que Bourdieu chama de “habitus primário de classe” são
constituídas por meio da interiorização “de um sistema objetivamente selecionado de signos, índices e
sanções, nas palavras e nas condutas, de um sistema particular de estruturas
objetivas, com vistas a operar objetivamente, ou seja, mais inconsciente do que
conscientemente.
Embora estejamos quase no arremate deste artigo, creio que
valha a pena apresentar uma definição completa apresentada pelo próprio Pierre
Bourdieu, em Economia das Trocas Simbólicas:
O
princípio unificador e gerador de todas as práticas e, em particular, destas
orientações comumente descritas como “escolhas” da “vocação”, e muitas vezes
consideradas efeitos da “tomada de consciência”, não é outra coisa senão o
habitus, sistemas de disposições inconscientes que constitui o produto da
interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos
determinismos objetivos e de uma determinação, do futuro objetivo e das
esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras
objetivamente ajustadas às estruturas objetivas (Bourdieu, 2011, pp.
201-202). |
Esse excerto deixa claro que
Bourdieu rechaça a ideia de “talento”, “vocação”, “escolha” etc., que
configurariam aquilo que chamaríamos de “tomada de consciência”. Ao contrário,
o sociólogo francês afirma que tudo isso não são senão “disposições
inconscientes” resultantes da internalização de estruturas externas que determinam
“futuros” configurados externamente e resultam em “esperanças” subjetivas. Em
outras palavras, Bourdieu, afirma que essas estruturas externas (objetivas)
produzem práticas individuais (subjetivas) que não buscam senão o ajuste com as
estruturas sociais objetivas e pré-determinadas, e que nossas práticas
contribuem para a estruturação dessa conformação objetiva, daí o habitus ser
estruturado, mas também estruturante.
Habitus cultivado
De acordo com Bourdieu, a
escola, importante formadora de hábitos, promove aos seus frequentadores e
àqueles que de alguma forma sofrem sua influência não exatamente esquemas de
pensamento individuais e/ou individualizados, “mas uma disposição geral geradora
de esquemas particulares capazes de serem aplicados em campos diferentes do
pensamento e da ação, aos quais pode-se dar o nome de habitus cultivado.
Bourdieu lança mão das
ideias do historiador de artes Erwin Panofsky e nos mostra como o pensador
alemão relaciona, como não poderia deixar de ser, o habitus à cultura, e
como a escola é responsável por intervir de maneira quase violenta sobre o habitus.
(...) numa sociedade
em que a transmissão da cultura é monopolizada por uma escola, as afinidades
profundas que unem as obras humanas (e, evidentemente, as condutas e os
pensamentos) têm seu princípio na instituição escolar investida da função de
transmitir conscientemente e em certa medida inconscientemente, ou, de modo
mais preciso, de produzir indivíduos dotados do sistema de esquemas inconscientes
(ou profundamente internalizados), o qual constitui sua cultura, ou melhor,
seu habitus, ou seja, em suma, de transformar a herança coletiva em
inconsciente individual e comum: relacionar as obras de uma época com as
práticas da escola, é um dos meios de explicar, não só o que elas proclamam,
mas também o que elas traem, pelo fato de participarem da simbólica (sic) de
uma sociedade (Bourdieu, 2011, p. 346). |
Desse modo, ao empregar o
conceito de habitus para qualificar a cultura inculcada pela e na
escola, Panofsky deixa claro que a cultura “não é só um código comum, nem mesmo
um repertório comum de respostas a problemas comuns ou um grupo de esquemas de
pensamento particulares e particularizados”, acima de tudo, a cultura é “um
conjunto de esquemas fundamentais, previamente assimilados, a partir dos quais
se engendram, segundo uma arte da invenção semelhante à da escrita musical, uma
infinidade de esquemas particulares, diretamente aplicados a situações
particulares. É isso.
No próximo artigo, abordarei
a noção de capital, segundo Bourdieu.
Márcio Coelho é licenciado em música,
mestre e doutro em linguística, com mestrado internacional em Estado, Governo e
Políticas Públicas, pela FLACSO – Faculdade Latino-americana de Ciências
Sociais. Também é secretário setorial de cultura do PT de Ribeirão Preto.
[1]
https://www.youtube.com/watch?v=R5J-zXXn2aI&t=5915s, visto pela última vem, em 02/06/2023.
[3] Em francês, dechiré
significa rasgado.
[4] A histerese é a tendência de um sistema de
conservar suas propriedades na ausência de um estímulo que as gerou, ou ainda,
é a capacidade de preservar uma deformação efetuada por um estímulo.
n2aI&t=5915s, visto pela última vem, em 02/06/2023.
[3] Em francês, dechiré
significa rasgado.
[4] A histerese é a tendência de um sistema de
conservar suas propriedades na ausência de um estímulo que as gerou, ou ainda,
é a capacidade de preservar uma deformação efetuada por um estímulo.
Márcio Coelho é licenciado em música, mestre e doutro em linguística, com mestrado internacional em Estado, Governo e Políticas Públicas, pela FLACSO – Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais. Também é secretário setorial de cultura do PT de Ribeirão Preto.
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