Capital Cultural

Ilustração: Ana Favaretto

Capital Cultural

Os artigos que escrevi e escreverei sobre os conceitos forjados pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu são partes da dissertação “EGRESSOS DO PROGRAMA RIBEIRÃO CRIANÇA (SP): capital cultural, mudança de habitus e mobilidade social”, apresentada à Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, Brasil, no âmbito do curso “Maestría Estado, Gobierno Y Políticas Públicas”, em parceria com a Fundação Perseu Abramo. Veja todos em: https://redept.org/artigos/Mrcio-Coelho



Chegamos ao conceito que serviu de estímulo e ponto de partida para a dissertação “EGRESSOS DO PROGRAMA RIBEIRÃO CRIANÇA (SP): capital cultural”, mudança de habitus e mobilidade social. Digo estímulo porque eu sempre havia desconfiado de que um bom conhecimento da língua natural daria distinção ao falante, em nossa sociedade, e ponto de partida porque, quando consegui entrever, em breve passagem de um texto, que esse “capital linguístico” que poderia dar distinção a um agente social não era senão parte de um arcabouço muito maior e mais elaborado chamado por Pierre Bourdieu de “capital cultural”, noção que, segundo o sociólogo francês, rivaliza, no concernente a prestígio social, com a noção de “capital econômico”.

Esse pequeno preâmbulo tem por objetivo precípuo alertar o leitor para o fato de que o presente artigo será acometido de prolixidade intencional, isto é, não pouparei palavras na busca de deixar muito clara a noção de capital cultural, que, sem dúvida, foi a mola mestra da minha pesquisa.

Segundo o Vocabulário Bourdieu, Pierre Bourdieu começou a formular a noção de capital cultural na década de 1960 e “tal noção tornou-se uma das mais poderosas categorias analíticas da teoria social e da pesquisa educacional contemporânea” (Catani, 2017, p. 103).

Bourdieu chegou a esse conceito ao buscar explicar o fracasso escolar entre crianças e jovens desfavorecidos socialmente, pois sempre rechaçou aquilo que chamava de “ideologia do dom”, isto é, ele não acreditava que o sucesso de alguns na escola era tributário de um dom natural, assim como o equivalente fracasso.

Se os seres humanos fossem dotados de desiguais capacidades cognitivas inatas, isto é, se fossem natural e intelectualmente desiguais, no concernente a capacidade de aprendizagem, estaria naturalizada a desigualdade social. Essa era a ideia que explicava a desigualdade social, até meados do século XX.

Já nos anos 1950, o sociólogo francês, a partir de muitos levantamentos quantitativos, chegou à conclusão de que havia “uma alta correlação estatística entre a origem social do aluno (sobretudo o nível de escolaridade dos pais) e seu desempenho escolar” (Catani, 2017, p. 103).

Ele começa, então, a testar hipóteses que pressupunham que:

“(...) crianças originárias das classes sociais superiores herdam de suas famílias um patrimônio cultural diversificado composto de estruturas mentais (maneiras de pensar o mundo), domínio da língua culta, cultura geral, posturas corporais, disposições estéticas, bens culturais variados (livros e outros materiais de cultura) etc., os quais se transformam em vantagens, uma vez investidos no mercado escolar. Mas, obviamente, isso só é possível porque os conteúdos curriculares impostos aos alunos e os sistemas de avaliação da aprendizagem praticados pela instituição escolar se assentam em uma cultura tida como “legitima”, isto é, constituída pelos produtos simbólicos socialmente valorizados (as letras, as ciências, as artes) que emanam dos grupos sociais dominantes, os quais exercem), por isso mesmo, uma ação de “violência simbólica” sobre os grupos dominados. De tal modo que a seleção e a classificação escolar dos alunos se revestem da aparência (socialmente aceitável) do mérito individual, dissimulando a realidade do privilégio social. A instituição escolar seria, portanto, um fator de “reprodução” (e não de "democratização") da sociedade” (Catani, 2017, pp.103-104).

 

Em resumo, a desigualdade que até então parecia algo natural foi colocada em xeque, pois, se entendermos que a as classes dominantes legitimam e valorizam determinado capital cultural – em geral, produzido por ela mesma e ao qual as classes dominadas não têm acesso -, ou seja, impõem aquilo que tem valor no aprendizado escolar, fica claro que, antes de ser uma instância de democratização do conhecimento, a escola é parte do processo de reprodução dos valores das classes dominantes, consequentemente, o aluno que não teve acesso, no seio da família, a determinadas regras culturais impostas pelas classes dominantes estará sempre em desvantagem, em relação ao aluno cultivado, como veremos mais à frente (Catani, 2017, p. 104)..

            A escola, e a educação em geral, foi o primeiro foco de Bourdieu para desenvolver a noção de capital cultural, mas, logo em seguida a essa construção, ele se espraiou para a análise de outras esferas da vida social, onde supunha que a riqueza cultural exercia efeitos poderosos sobre a classificação dos indivíduos nas diferentes hierarquias sociais.

 

“Partindo do pressuposto de que o mundo social é multidimensional e que, portanto, os bens econômicos ou financeiros não constituem a única forma de riqueza que fundamenta a divisão da sociedade em classes, em estratos sociais, o autor forneceu, ao longo de sua obra, inúmeras e robustas evidências empíricas da existência de outros tipos de recursos que atuam na definição da posição ocupada por um indivíduo (ou por um grupo de indivíduos), no interior das hierarquias sociais. Ele defende que as diferenças relativas às condições materiais de existência se transmutam - por meio de um processo subjetivo de internalização de disposições e de competências - em diferenças no estilo de viver, isto é, na maneira de se usufruir os bens materiais possuídos, engendrando distinções simbólicas entre os indivíduos ou, em outras palavras, distinções relativas à posse de bens culturais” (Catani, 2017, p.104).

 

Logicamente, a noção de “capital” foi tomada de empréstimo do pensamento de Marx sobre o processo de acumulação de recursos materiais. No entanto, ao acrescentar o adjetivo “cultural”, Bourdieu adverte que se trata de uma outra dimensão da realidade social. Embora essa realidade seja menos palpável, “implica igualmente a produção, distribuição e consumo de (um tipo específico de) bens capazes de render dividendos, ou seja, de proporcionar lucros simbólicos a seus detentores".

Importante ressaltar que esses lucros simbólicos são uma espécie de reforço da dominação, como veremos adiante. Eles podem ser materiais ou imateriais. Bourdieu definiu três modalidades de existência dos bens simbólicos no âmbito daquilo que ele denominou capital cultural; são eles os seguintes:

 

1.    Capital cultural incorporado.

 

“(...) em seu estado incorporado, apresenta-se como disposições ou predisposições duradouras que se entranham no corpo de uma pessoa, tornando-se suas propriedades físicas (ex.: posturas corporais, esquemas mentais, habilidades linguísticas, preferências estéticas, competências intelectuais etc.) Esse é, para Bourdieu, o estado ‘fundamental” do capital cultural” (Catani, 2017, p.105).

 

Do ponto de vista da psicologia, assim como na teoria bourdieusiana, disposição diz respeito à tendência de um agente cultural de se comportar, de maneira relativamente estável no tempo, em determinadas situações. Portanto, a disposição desse agente se diferencia de um simples comportamento, que nada tem de estável, pois se modifica constantemente.

            Logo no início deste artigo, citei minha intuição no que diz respeito ao domínio da forma culta da língua natural, chamada no excerto acima de “habilidades linguísticas”. Essa ideia amplia tal noção, pois incorporar habilidades linguísticas é mais do que conhecer o padrão formal da língua, mas também, por exemplo, falar com fluidez, escrever poesias, letra de canção, textos publicitários, textos jornalísticos, dentre outras modalidades.

            Certamente, todos nós, no íntimo, já percebemos que, ao se sentar na mesa para fazer uma refeição, indivíduos das classes dominantes se comportam de maneira diferentemente dos agentes sociais das classes dominadas. Assim como o fazem ao se cumprimentarem, ao conversar, ao assistir a um concerto de música, enfim, as posturas corporais de agentes sociais de classes diferentes são também diferentes e buscam marcar distinções, isto é, diferenças sociais.

            A pesquisadora Janedalva Gondim afirma que o “capital cultural em seu estado incorporado está diretamente ligado à singularidade do agente e pressupõe um tempo de investimento pessoal para ser incorporado”. A principal forma do capital incorporado é a adquirida por meio de herança familiar, que, por ser doméstica e extremamente dissimulada, faz do capital cultural, o mais oculto e determinante dos investimentos educativos, devido à sua precocidade e durabilidade (Gondim, 2017, p. 44).

 

“As diferenças no capital cultural possuído pela família implicam diferenças: primeiramente, na precocidade do início do empreendimento de transmissão e de acumulação, tendo por limite a plena utilização da totalidade do tempo biologicamente disponível (...); e depois na capacidade. A transmissão do capital cultural incorporado também pode se dar pela incorporação de novas disposições ao longo da vida do indivíduo, na escola, nos grupos religiosos etc., embora, seja determinado pelo capital incorporado durante sua primeira socialização, assim definida para satisfazer às exigências propriamente culturais de um empreendimento de aquisição prolongado” (Bourdieu, 2007ª, p. 76, apud Gondim, 2017, p. 44).

  

2.    Capital cultural objetivado.

 

“(...) em seu estado objetivado, configura-se como a posse de bens materiais que representam a cultura dominante (ex; livros, obras de arte e toda sorte de objetos armazenados em bibliotecas, museus, laboratórios, galerias de arte etc”. (Catani, 2017, p.105).

 

Esse tipo de capital cultural se apresenta sob a forma de bens culturais, como quadros, esculturas, jarros, tapetes, direitos autorais de obras, livros etc. “O capital cultural objetivado é transmissível em sua materialidade, mas não na condição de apropriação específica” (Gondim, 2017, p. 44), isto é, a família pode deixar como herança um quadro, que para o herdeiro pode ter apenas valor econômico, pois o gosto pela arte faz parte do que chamamos capital cultural incorporado.

  

3.    Capital cultural certificado ou institucionalizado.

  

“(...) em seu estado institucionalizado, manifesta-se como atestado e reconhecimento institucional de competências culturais adquiridas (ex.: o diploma e todo tipo de certificados escolares)” (Catani, 2017, p.105).

           

Esse tipo de capital é aquele constituído sob a forma de certificados e diplomas. Segundo Janedalva Gondim, “enquanto o capital cultural, em seus estados incorporado e objetivado, apresenta-se como vivência ou experiência, o capital certificado é um símbolo, uma certificação escolar, que depende, em certa medida, de outros capitais, que podem ser disponibilizados a seu serviço” (Gondim, 2017, p. 45), isto é, o capital cultural certificado depende da possibilidade de um agente social poder frequentar cursos livres ou escolas formais, essa possibilidade é garantida pelo capital econômico, ou, com sorte, pelo capital social do indivíduo.

O Vocabulário Bourdieu afirma que, na verdade, para que esses bens culturais adquiram estatuto de capital é necessário que tenham como origem a produção cultural humana que seja identificada “com as propriedades intelectuais das classes dominantes, configurando aquilo que o autor denomina de “cultura legitima” porque tem curso e validade na escala da sociedade como um todo (Catani, 2017, p.105)".

Quando Bourdieu fala em “cultura legítima”, ele está se referindo à cultura legitimada pelo “modelo” cultural estabelecido pelas classes dominantes, por meio do que ele chama de arbitrário cultural (assunto do próximo artigo), que tem o poder de se impor e de se fazer reconhecer por todos, adquirindo, assim, a aparência enganosa de universal.

Em relação ao aparecimento do capital cultural, Bourdieu afirma que surgiu na medida em que surgiu o Estado moderno, “em um corpo de burocratas, originários da aristocracia e da nobreza togada, cuja legitimidade deriva de suas credenciais escolares obtidas em instituições de ensino que se desenvolveram desde o século XVIII, chegando às Grandes Écoles da atualidade” (Catani, 2017, p.105).

Segundo o sociólogo francês, os burgueses da indústria e do comércio, que, então, constituíam a nova classe ao lado daqueles que ele chama de “nobres de espada”, diante de outros segmentos sociais dominantes, lançaram mão do “poder” do capital cultural, isto é, do novo capital, como arma para o enfrentamento social.

 

“Mas o processo de expansão e valorização do capital cultural só encontrará seu pleno desenvolvimento nas sociedades capitalistas avançadas, em decorrência de mudanças estruturais advindas da industrialização e do desenvolvimento social e econômico. A expansão massiva das taxas de escolarização, a ampliação do acesso aos níveis mais avançados do sistema de ensino, o surgimento e forte crescimento de uma indústria cultural e dos meios de comunicação de massa, tudo isso acarretará e aparecimento de novas profissões ligadas à divisão do trabalho cultural e promoverá a acumulação dessa “nova” espécie de riqueza (Catani, 2017, p.105).

 

Assim, nas sociedades contemporâneas, o espaço social se baseia no capital econômico e no capital cultural, isto é, nas duas principais formas de distinção social, pensada sempre como diferenciação. Esses dois capitais, como não poderia deixar de ser numa sociedade capitalista, são distribuídos de maneira desigual entre a população e “operam em favor da reprodução das estruturas de dominação, embora os bens simbólicos o façam de um modo mais indireto e menos perceptível” (Catani, 2017, p.105).

 

“No que diz respeito às leis de aquisição do capital cultural, o pressuposto central da argumentação bourdieusiana é o de que ela se dá, principalmente, por meio da família e de suas ações socializadoras. De tal modo que as famílias cultas transmitiriam, a seus descentes, um conjunto socialmente legitimado de recursos, competências e disposições de natureza diversificada que rendem a eles lucros materiais ou simbólicos em diferentes mercados sociais: “De fato, a família tem um papel determinante na manutenção da ordem social, na reprodução, não apenas biológica, mas social, isto é, na reprodução da estrutura do espaço social e das relações sociais". Ela é um dos lugares por excelência de acumulação de capital sob seus diferentes tipos e de sua transmissão entre as gerações: ela resguarda sua unidade pela transmissão e para a transmissão, para poder transmitir e porque ela pode transmitir (RPp, 131) (Catani, 2017, pp.105-106).

 

Bourdieu deixa bem clara a distinção entre a transmissão do capital cultural objetivado - que ocorre instantaneamente, pois trata-se da transferência de um bem material – e o capital em seu estado incorporado, que demanda tempo para a aquisição. No entanto, no caso do capital objetivado, “o que é transmissível é a propriedade jurídica e não (ou não necessariamente) o que constitui a condição da apropriação específica, isto é, a possessão dos instrumentos que permitem desfrutar de um quadro ou utilizar uma máquina” (BE, 77) (Catani, 2017, p.106).

Ele nos esclarece que o capital cultural em seu estado incorporado segue leis cuja precocidade e dissimulações são acentuadas, isto é, desde muito cedo, as famílias dotadas de abundante capital cultural - e somente essas - de maneira dissimulada, transferem, num processo relativamente longo e insensível, um capital acumulado hereditariamente. Para o agente social receptor de tal herança, “o tempo de acumulação engloba a totalidade do tempo de socialização” (Catani, 2017, p.106).

 

“Além disso, a aquisição de capital cultural supõe um investimento do próprio sujeito que deve se expor às ações de inculcação e assimilação do patrimônio cultural, entregando-se a um trabalho pessoal sobre si mesmo, pois, “tal como o bronzeamento, essa incorporação não pode efetuar-se por procuração". Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho do ‘sujeito’ sobre si mesmo (fala-se em cultivar-se) (Catani, 2017, p. 106).

 

Bourdieu alerta para que tenhamos cuidado ao medir o capital cultural incorporado, pois, ao levar em conta somente o tempo de escolarização e não levar em conta a primeira educação, que é a familiar, a possibilidade de incorrer em erro é muito grande. Entretanto, seus estudos apontam o tempo de aquisição do capital cultural como uma das melhores réguas para tal medição.

O Vocabulário Bourdieu destaca que cada uma das riquezas sociais listadas por Bourdieu, a saber, o capital econômico, o capital cultural, o capital social e o capital simbólico, pode ser transformada uma na outra, com destaque especial apara a conversão em capital econômico.

 

“Isso ocorre porque, embora sendo de natureza muito diversa, elas mantém entre si relações muito fortes; o que faz com que - no âmbito das dinâmicas sociais - elas se reconvertam incessantemente umas nas outras, segundo leis que o autor trabalhava arduamente para desvendar. No que tange ao capital cultural, o autor insistirá, sobretudo nas lógicas que presidem a sua conversão em capital econômico e vice-versa. “Ao conferir ao capital cultural possuído por determinado agente um reconhecimento institucional, o certificado escolar [...] permite também estabelecer taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital econômico, garantindo o valor em dinheiro de determinado capital escolar. Produto da conversão de capital econômico em capital cultural, ele estabelece o valor, no plano do capital cultural, do detentor de determinado diploma em relação aos outros detentores de diploma e, inseparavelmente, o valor em dinheiro pelo qual pode ser trocado no mercado de trabalho - o investimento escolar só tem sentido se um mínimo de reversibilidade da conversão que ele implica for objetivamente garantido” (EB, 79), (Catani, 2017, p. 106).

 

Segundo pesquisadora Janedalva Gondim, de acordo com a perspectiva de Bourdieu, a realidade social é baseada na distribuição dos capitais econômico e cultural. No entanto, sabemos, a distribuição de bens materiais e simbólicos é realizada de modo desigual, sendo assim, “as escolhas ou práticas de consumo cultural tendem a reproduzir as relações de dominação subjacentes” (Gondim, 2017, p. 26).

Para os agentes sociais de família cultivada, haverá sempre um capital cultural herdado, isto é, passado de pais para filhos, mas não só de pais, pois família vai além da relação pais e filhos. Entretanto, para as classes dominadas, o processo de aquisição de capital cultural acontece por meio do aprendizado tardio, na escola. Assim, o agente social dominado tem um período curto para tentar equiparar seu capital cultural com o dos agentes das classes dominantes, desse modo, esse processo é acelerado e não tanto eficaz. Tudo ocorre como quando alguém que não pôde estudar no período apropriado tem de recorrer a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

 

(...) a escola cumpriria, simultaneamente, uma função de reproduzir e de legitimar as desigualdades sociais. A reprodução seria garantida pelo simples fato de que os alunos que dominam, por sua origem, os códigos necessários à decodificação e assimilação da cultura escolar tenderiam a alcançar sucesso escolar, pois pertenceriam às classes dominantes. Com isso, a legitimidade das desigualdades sociais acorreria, indiretamente, pela negação do privilégio cultural dissimuladamente oferecido aos filhos das classes dominantes julgadas como habilidades naturais (Gondim, 2017, p. 46).

Embora tratarei, no próximo artigo, do tema “arbitrário cultural”, é importante ressaltar que esse aspecto, a imposição da cultura dominante travestida de legítima, é denominado por Bourdieu (2001) de arbitrário cultural, na medida em que nenhuma cultura pode ser objetivamente definida como superior a outra. Os valores e significados que orientam cada grupo social, em suas atitudes, seriam, por definição, arbitrários e não podem “ser deduzidos de nenhum princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por nenhuma espécie de relação interna à natureza das coisas ou a uma natureza humana” (Bourdieu, 2001, p. 74). P. 46

 

 “Nesse sentido, é possível concluir que a escola, além de divulgar o arbitrário cultural e reforçar as desigualdades, mascarando seus mecanismos de seleção, por meio da ideologia do dom e da meritocracia (Boudieu, 2001), também incute um habitus que seja mantido mesmo depois do fim do trabalho escolar. Isso é o que confere ao mercado escolar uma autonomia relativa, que parece justificar a ideologia do mérito (Gondim, 2017, p. 47).

 

É importante salientar que, de acordo com o sociólogo francês, o maior impacto no agente social, no que concerne à aquisição do capital simbólico, diz respeito ao capital cultural incorporado, isto é, aquele cuja família é o elemento mais importante, pois é ele que atua como instância do conhecimento. No que diz respeito à forma certificada de capital cultural, é função da escola inculcar a cultura legítima, portanto, é a escola a principal instância de reconhecimento e consagração social.

            De acordo com Janedalva Gondim, é a escola a principal instância de reconhecimento, pois desenvolve nos agentes sociais a aptidão e a disposição para decodificar a produção cultural de bens eruditos, além de ser a principal instância de consagração e legitimação de obras do passado, por meio do currículo escolar, assim, transformando-as em clássicos (Gondim, 2017, p. 47). No entanto,

 

“A cultura propriamente escolar é uma “cultura segunda”, dedicada inteiramente aos imperativos da transposição didática (Forquin, 1992) e que, ao cumprir a função de canonizar e de inculcar, contribui para manter uma defasagem entre a cultura produzida pelo campo artístico e a cultura escolar” (Gondim, 2017, p. 48).

Sabemos que os bens produzidos pela cultura erudita são raros, de difícil assimilação e só são apreendidos por quem está de posse de conhecimentos que possibilitem sua decifração. Sabemos também que tais conhecimentos – ou esquema de pensamentos – são distribuídos de maneira desigual, principalmente a quem chega à escola sem a inculcação de valores culturais promovidos pelas famílias cultivadas. Sendo assim,

(...) a conclusão a que se chega é de que a escola contribui para reproduzir a força simbólica que dissimula a estrutura das relações sociais. Em outras palavras, o sistema de ensino “reproduz um arbitrário cultural do qual ele não é produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre grupos ou as classes. (Gondim, 2017, p. 48).

 

Consequentemente, quem não domina as ferramentas conceituais que possibilitam o domínio do entendimento da cultura erudita dela se afasta exatamente porque não está de posse dos instrumentos que o possibilitam decifrá-la. “Em matéria de arte e de seu consumo, ocorre conforme a mesma lógica de organização do espaço social que é configurado pelo volume de capital, pela composição do capital e pela trajetória social” (Gondim, 2017, p. 49).

            É com esse pensamento que Bourdieu propõe a reexposição do conceito de classes, pois não basta apenas examinar as condições materiais e a posição ocupada no processo de produção de mercadorias para definir um grupo social relativamente homogêneo. Para isso, a observação da posição em relação ao consumo cultural é de suma importância, pois as “posições de classe correspondem a um sistema de disposições para agir, pensar e perceber, que se expressam sob a aparência de preferências individuais, as estruturas externas (as condições de existência) das quais ele é originário”. (Gondim, 2017, p. 52).

            No próximo artigo, abordarei a noção de “arbitrário cultural”, com base no importante livro de Pierre Bourdieu Economia das Trocas Simbólicas, com destaque para a introdução escrita por Sérgio Miceli.

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Márcio Coelho mestre e doutor em linguística (USP); com mestrado internacional pela FLACSO – Faculdade Latino-americana de Ciências |Social e licenciado em música. Seja Companheiro, faça sua doação ao PT de Ribeirão Preto

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