Capital
Ilustração: Ana Faveretto

Os artigos que escrevi e escreverei sobre
os conceitos forjados pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu são partes da
dissertação “EGRESSOS DO PROGRAMA RIBEIRÃO CRIANÇA (SP): capital cultural,
mudança de habitus e mobilidade social”, apresentada à Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais, Brasil, no âmbito do curso “Maestría
Estado, Gobierno Y Políticas Públicas”, em parceria com a Fundação Perseu
Abramo. Veja todos em: https://redept.org/artigos/Mrcio-Coelho
De acordo com o Vocabulário Bourdieu, o conceito de capital
foi tomado de empréstimo da economia, mas também foi radicalmente repensado por
Bourdieu, desde o início dos anos 1960, na perspectiva de uma “economia geral
das práticas”, que ele não deixaria mais de aprofundar em seus trabalhos.
O processo que resulta na transmissão
hereditária do patrimônio serviu de modelo analítico e permitiu Bourdieu
estender a noção de “capital”, isto é a zona de pertinência da noção foi
ampliada, em particular, em relação à cultura
(o que veremos com profundidade no próximo artigo) e, ao mesmo tempo,
instaura uma redefinição profunda de tal noção, desmonetizando-a e apartando-a
de qualquer viés utilitarista.
“Um “capital” é um “recurso”, segundo o
modelo do “patrimônio”, isto é, um estoque de elementos (ou “componentes”)
que podem ser possuídos por um indivíduo, um casal, um estabelecimento, urna
“comunidade”, um país etc. Um capital é também uma forma de “segurança”,
especialmente do ponto de vista do futuro; tem a característica de poder, em
determinados casos, ser investido e acumulado de modo mais ou menos ilimitado”
(Catani, 2017, p. 101). |
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O verbete “capital” elenca e define alguns tipos de capital os quais
exporei a seguir, resumidamente, apenas para aprofundar um pouco tal noção e
facilitar o entendimento do capital cultural, tema de que tratarei no próximo
capítulo.
O capital corporal ou capital
físico é “a escala
do indivíduo biológico, o patrimônio genético, os estados físico e fisiológico de uma pessoa, num primeiro plano, e, além disso,
a depender de fatores sociais,
levando a ideia de um “capital corporal” ou “físico” individual, vinculado a
diversas propriedades fisiológicas.
A noção de capital econômico, segundo o Vocabulário
Bourdieu, “corresponde a uma extensão da noção corrente de “patrimônio”. Ele é
“naturalmente” avaliado em unidades monetárias, mas é também muitas vezes
físico: terra, bens imobiliários, automóvel, equipamentos, “posses” diversas
etc.” (Catani, 2017, p. 102).
O capital financeiro é somente um dos componentes do
capital econômico e, em geral, está associado a várias formas de bem-estar e vida
confortável. Esse conforto é manifestado pelo tamanho das moradias; quantidade
e qualidade dos meios de locomoção, que, em geral, são automóveis particulares,
proventos e salários, dentre outras formas. Tudo isso não constitui, em si
mesmo, um capital econômico, mas permite eventualmente constitui-lo. Todavia, são
indicadores de posição econômica, logicamente, vinculado a outras formas de
capital (Catani, 2017, p. 102).
O capital social diz respeito a
relações sociais, mas considerando essas relações como recursos possuídos por
uma pessoa, uma família, e constitutivas de uma rede. É grosso modo
aquilo que chamamos na atualidade de network, entretanto não diz
respeito só a trabalho.
Ao estudar a solidariedade entre os
fonemas, na obra do linguista Louis Hjelmslev, constatei que uma das acepções
desse termo era “interdependência”, isto é, o som de um fonema, em geral, nada
significa sem uma composição solidária. É quando o som do F se encontra com o
som do A para significar o nome da nota musical Fá, por exemplo.
Não foi difícil transportar esse conceito para o âmbito
social, isto é, constatar que vimemos em uma rede de interdependência, embora
nem todos tenham a consciência de
que o coletor de lixo, a empregada doméstica, o pedreiro e tantos outros
profissionais desprestigiados dependem tanto do nosso dinheiro quanto nós
dependemos de seu trabalho; dependem tanto da nossa oferta de emprego quanto
nós dependemos da eficácia de seu trabalho; dependem tanto da nossa
cordialidade quanto nós dependemos da sua gentileza. Portanto, ser solidário é
ter consciência da interdependência humana.
Além
dessa interdependência facilmente constatável, de acordo com as relações
sociais de um indivíduo, sua vida pode ser mais ou menos facilitada. Quando um
pai empresário, além do capital econômico, tem o capital social alto, em geral,
é mais fácil conseguir um emprego para o filho. Do mesmo modo, um indivíduo que
seja ator e tenha amigos que trabalham numa grande emissora de TV, poderá ter
seu acesso facilitado ao elenco de alguma novela. Ao passo que indivíduos com
baixo capital social, isto é, que não tenham amigos ou conhecidos empresários,
médicos, advogados, artistas etc., não terão a oportunidade de conseguir
algumas facilidades que estão disponíveis para outros indivíduos.
O capital simbólico, por
assim dizer, é resultante da conjugação de outros capitais, como o físico, o
social, o econômico e o cultural.
Segundo o Vocabulário Bourdieu, o capital simbólico, seja
de um indivíduo ou de uma instituição, se define pelo valor que a sociedade lhe
atribui. Portanto, está em jogo mais uma vez uma dimensão relacional e,
principalmente, coletiva, já que o estatuto simbólico, em sua dimensão mais
concreta, corresponde ao fato de ser “reconhecido” e “valorizado”
(“considerado”, “apreciado”, “amado” etc. (Catani, 2017, p. 102).
“Tal
reconhecimento assume formas mais ou menos institucionalizadas: pode-se
integrar aí o estatuto reconhecido ao indivíduo como “cidadão” e os diversos
direitos associados a qualquer estatuto, mas também — sobretudo, nos grupos
dominantes — as condecorações, os títulos, as “honrarias” em geral. A
exposição midiática está, por exemplo, na origem de formas particulares de
capital simbólico que erigem indivíduos em personalidades públicas (os
“people”, as “personalidades” etc.). No lado oposto, a discriminação ou a
estigmatizarão (seja qual for a origem: cor de pele, posição na ordem das
castas, deficiência etc.) são fontes de diversas formas de opressão que
fortalecem os efeitos de dotações inferiores nas três precedentes espécies de
capital. O capital simbólico está
sempre associado as outras formas de capital”. (Catani, 2017, pp.
102-103) |
Os diferentes tipos de capital, como
os apresentados acima, podem ser acumulados e/ou convertidos uns nos outros.
Também podem ser transmitidos de geração em geração. Os modos de transmissão
são muitos e, invariavelmente, dependem de contextos sociais que estabelecem as
condições de seu valor social.
“Uma
parte importante das estratégias dos indivíduos e dos grupos visa manter ou
estender sua dotação (absoluta e relativa) nesses diferentes tipos de capital.
No entanto, essas estratégias não são, em geral, estratégias de “maximização”
conscientes e explicitas. Assim, o valor relativo dos diferentes tipos de
capital torna-se, por sua vez, um fator de lutas simbólicas” (Catani, 2017,
p.103). |
O professor Clóvis de Barros Filho,
por meio da oralidade, faz algumas considerações, no curso que venho citando
nessa sequência de artigos, as quais certamente, embora coloquiais, acrescentam
muito à noção de capital apresentada acima.
Para Barros Filho, capital é o conjunto
de recursos que cada jogador tem para disputar os troféus específicos do campo.
A noção de troféus, que está em Bourdieu, é muito importante para
compreendermos os objetivos de cada agente em determinado campo. Importante
destacar que todo campo tem troféus.
Imaginemos um compositor de canções
que, como não poderia deixar de ser, está no campo artístico, mais
especificamente, no subcampo musical. Seus troféus podem ser vários: ter sua
canção tocada nas rádios, ou na trilha de um filme ou novela, ou, ainda,
gravada por uma cantora famosa, dentre outros. Para alcançar seus objetivos,
ele terá, primeiro, que reunir condições de aceitabilidade no campo, isto é,
ele precisa ser reconhecidamente um cancionista, isto é, um músico que domine o
equilíbrio entre melodia e letra, caso contrário, ele nem poderá entrar no
jogo. Além disso, precisa de um capital cultural que o permita criar obras de
prestígio, afinal, se ele não tiver conhecimentos – formais ou práticos – de
sua língua natural e de música, não será capaz de criar canções que sejam
reconhecidas como tal. O capital social também terá crucial importância para
seus desígnios, pois não é difícil imaginar que não é fácil se aproximar de uma
grande gravadora – as chamadas majors -, de um importante produtor ou de
um diretor de cinema ou de novelas. Uma boa rede relacionamentos o ajudará
sobremaneira na busca de seus objetivos.
Importante atentarmos para o fato de
que cada campo tem capitais específicos. O capital do cancionista citado acima
de nada serve, se o objetivo do agente for ser um juiz, isto é, buscar um
troféu no campo judiciário. De acordo com Barros Filho, sempre
que um agente tenta converter o capital de um campo em outro, ele paga um preço
que pode corroer seu capital.
Salvo algumas exceções, como Romário e Sérgio Reis, por exemplo, em
geral, não é fácil converter o capital esportivo e o artístico em capital
político. Não são poucos os exemplos dos que tentaram e não lograram êxito.
Mesmo nesses casos em que os agentes, de certo modo, conseguiram converter seus
capitais, não é difícil perceber que seus capitais de origem foram corroídos,
isto é, hoje, o capital esportivo - ou futebolístico - de Romário, se comparado
ao seu capital político, está corroído, enquanto seu capital político está aumentando
em concentração. O mesmo acontece com Sérgio Reis.
O valor do troféu de um campo só é completamente perceptível por quem
joga. Não são poucas as vezes em que ouvimos alguém dizer que não vê graça em
22 homens correndo atrás de uma bola. Isso demonstra que há quem não veja valor
algum em atuar no campo futebolístico.
As posições no campo só têm sentido em relação a outras posições, afinal
o agente só poderá se sentir em uma posição superior, se houver outros agentes
em posição inferior em relação a dele.
Importante ressaltar que o valor dos troféus só tem sentido na dinâmica
do jogo, ou seja, os troféu alcançados na indústria fonográfica, isto é, no
campo musical, por Chico Buarque, não têm valor algum num campeonato de futebol
no Estádio do Politheama, seu campo de futebol, literalmente.
O próximo artigo tratará do capital cultural.
---Márcio Coelho é licenciado em música, mestre e doutor em linguística, com mestrado internacional em Estado, Governo e Políticas Públicas, pela FLACSO – Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais

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