Arbitrário Cultural
Ilustração: Ana Favaretto
O conceito de “arbitrário cultural” é de fundamental importância para que compreendamos o modo como se estabelece a legitimidade dos produtores culturais e de suas obras. Para Bourdieu, a cultura legítima é aquela imposta pelas classes dominantes e a escola é a principal instância de consagração e reprodução do por ele chamado “arbitrário cultural”.
Segundo o Vocabulário Bourdieu
Arbitrário cultural” é o termo utilizado por Bourdieu para designar o fenômeno social que consiste em erigir a cultura particular de uma determinada classe social (a “classe dominante”) em cultura universal. A arbitrariedade do processo residiria, segundo o sociólogo francês, na ocultação da origem de classe dessa variante cultural, isto é, no apagamento do fato de que ela não possui, em si mesma, nenhum valor intrínseco, retirando toda a sua superioridade do fato de estar em posição dominante nas relações de forças entre os diferentes grupos sociais (Catani, 2017, p. 36).
O sociólogo francês sustenta que o sistema simbólico, ou a cultura, de uma classe não é erigido de forma democrática, ou seja, é arbitrado pelas classes dominantes “na medida em que a estrutura e as funções dessa cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por nenhuma espécie de relação interna à natureza das coisas ou à natureza humana” (Catani, 2017, p. 36).
Não é raro discutirmos a valoração de culturas e de produções culturais, mas nunca apontamos quais os parâmetros são utilizados para tal. Imagino que seja comum o fato de se atribuir maior valoração positiva à chamada “música erudita” em detrimento da chamada “música popular”. No entanto, que parâmetros são atribuídos a essa valoração?
De acordo essa premissa, Beethoven é melhor compositor do que Chico Buarque, por exemplo. No entanto, o compositor alemão não fazia letras de canção, não sabia tocar samba e compunha músicas muito longas, que, atualmente, estão totalmente fora do padrão das músicas que o grande público escuta, mas, estranhamente, continuamos com a sensação de que a obra de Beethoven é superior à de Chico Buarque.
A tese de Bourdieu é que um poderoso trabalho social ocorre em escala societária de “legitimação” da cultura das classes dominantes e que resulta na produção de uma cultura “legítima” posto que legitimada pelos agentes sociais, cuja origem ficou esquecida num processo dito de “amnésia da gênese”. “Em uma formação social determinada, a cultura legítima, isto é, a cultura dotada da legitimidade dominante, não é outra coisa senão o arbitrário cultural dominante, na medida em que ele é ignorado em sua verdade objetiva de arbitrário cultural e de arbitrário cultural dominante” (Catani, 2017, p. 36).
Poderíamos dizer de chofre: a cultura legítima, ou legitimada, é a cultura imposta pelas classes dominantes. Mas, o sociólogo francês desenvolve mais satisfatoriamente tal tese. Segundo ele, nenhuma cultura pode ser definida como superior a outra, por uma razão simples:
Os valores que orientariam cada classe ou grupo social em suas disposições e condutas seriam, por definição, arbitrários, ou seja, não estaria fundamentados em nenhuma razão objetiva, universal. Porém, apesar de arbitrários, esses significados e valores, isto é, a cultura de cada grupo, seriam concebidos e vividos pelos indivíduos como os únicos possíveis ou, pelo menos, como os únicos válidos (Catani, 2017, p. 36).
Assim, não temos dificuldade em crer - quase que como única opção - que o compositor alemão Beethoven é um gênio e Chico Buarque um compositor menor.
Esse arbitrário cultural, de acordo com Bourdieu, converte-se em cultura legítima a partir da consideração da relação entre os vários arbitrários culturais que estão em disputa na sociedade e das relações de força entre os grupos ou classes sociais que coexistem numa sociedade.
No caso das sociedades de classes, a capacidade de imposição, de inculcação e de legitimação de um arbitrário cultural corresponderia a força da classe social que o sustenta. Assim, de um modo geral, os significados (conhecimentos, valores etc.) arbitrários capazes de se impor como cultura legitima seriam aqueles sustentados pelas classes dominantes (Catani, 2017, p. 36).
Creio que o mais importante da construção da ideia de arbitrário cultural repousa no fato de todo esse processo se dar de modo dissimulado, isto é, os agentes da sociedade não percebem que a cultura que eles também assumem como legítima, na verdade, está sendo imposta pela classe dominante, o que aconteceria com todas as formas de hierarquia social, que retiram sua legitimidade do fato de que a arbitrariedade, que está na origem de sua constituição, passa despercebida aos olhos dos atores sociais (Catani, 2017, p. 36).
É a esse processo que transforma a cultura de uma classe – ou grupos – em cultura universal, que, de maneira astuta, Bourdieu chama de “violência simbólica”.
De acordo com o sociólogo francês as mesma coisa aconteceria com o processo formal de educação, isto é, os conteúdos e valores transmitidos pelos sistemas de ensino, também considerados como cultura legítima, na verdade, compõem o arbitrário cultural dominante. Essa “violência simbólica” não tem assento em nenhum tipo de superioridade intrínseca em relação a outras variantes culturais.
Observa, no entanto, que a autoridade pedagógica, ou seja, a legitimidade da instituição escolar e da ação pedagógica que nela se exerce só pode ser garantida na medida em que o caráter arbitrário e socialmente imposto da cultura escolar é ocultado (Catani, 2017, p. 37).
O maior resultado dessa “violência simbólica” sobre os agentes sociais dominados não é exatamente a perda da aculturação familiar, mas o nefasto reconhecimento da legitimidade da cultura dominante.
No início dos anos1960, em Les héritiers, Bourdieu e Passeron escreviam: “Para os filhos dos camponeses, dos operários ou dos pequenos comerciantes, a aquisição da cultura escolar é aculturação” (LH, 37). Esse reconhecimento se traduziria numa desvalorização do saber e do saber fazer tradicionais dos meios populares, em favor do saber e do saber fazer socialmente legitimados (Catani, 2017, p. 37).
Analisaremos, agora, dois excertos da brilhante introdução que Sérgio Miceli escreveu para edição brasileira do livro mais conhecido de Pierre Bourdieu, a saber, A Economia das Trocas Simbólicas.
Segundo Miceli, “para Bourdieu, a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito constitui uma função lógica necessária que permite à cultura dominante numa dada formação social cumprir sua função político-ideológica de legitimar e sancionar um determinado regime de dominação”. (Bourdieu, 2011, p XVI)
Seria muita ingenuidade pensar que não haveria possibilidade de algum agente social perceber, de algum modo, tal arbitrário e engendrar um comportamento desviante. Miceli, no excerto a seguir, trata de quão é penetrante tal arbitrário, mas, também da possibilidade de desvio.
Enfim, sendo a modalidade instaurada o produto de uma seleção arbitrária a partir de um fundo comum que inclui todas as alternativas possíveis, inclusive aquelas ainda não atualizadas, o caráter arbitrário que marca qualquer modalidade traz consigo tamanho poder de inscrever seu selo no mais ínfimo objeto, regra ou valor que, pela mesma razão, consegue envolver os agentes em representações, crenças e símbolos concordes com o arbitrário instituído. Sendo assim, a nenhum grupo é dada a possibilidade de enxergar o caráter arbitrário de ordem social sob pena de ultrapassar os limites e as oposições significantes que delimitam sua operação. A única exceção, de Mauss e Lévi-Strauss, seria o “desviante”, capaz de pôr em questão e relativizar as regras sociais vigentes ao nortear seu comportamento e sua práxis por uma lógica radicalmente outra e estranha àquela prevalecente no interior do grupo (Miceli, p. XXVII, apud Bourdieu, 2011).
De a cordo com Bourdieu, a constituição de um campo intelectual e artístico em oposição ao campo econômico, político e religioso - e, consequentemente, seu corpo de agentes sociais correspondentes: intelectual em oposição ao iletrado e artista em oposição ao artesão – ocorre com pretensões de legislar na esfera cultural em nome de um poder ou de uma autoridade que não seja propriamente cultural (Bourdieu, 2011, p. 99).
Importante, nesse momento, explicar que o que Bourdieu chama de “instâncias de consagração” são pessoas e instituições que reconhecem artistas, intelectuais, produções artísticas e culturais como legítimos. Portanto, são prêmios, festivais, artistas e intelectuais famosos e considerados importantes e, principalmente, os sistemas de ensino, que não só legitimam o conhecimento das classes dominantes como elegem artistas e intelectuais que “merecem” ser estudados.
Pierre Bourdieu define a ação pedagógica como ato de imposição de um arbitrário cultural, que dissimula aquilo que inculca. Desse modo,
(...) o sistema de ensino cumpre inevitavelmente uma função de legitimação cultural ao converter a cultura legítima, exclusivamente através do efeito de dissimulação, o arbitrário cultural que uma formação social apresenta pelo mero fato de existir e, de modo mais preciso, ao reproduzir pela delimitação do que merece ser transmitido e adquirido e do que não merece, a distinção entre as obras legítimas e as ilegítimas e, ao mesmo tempo, entre a maneira legítima e ilegítima de abordar as obras legítimas. Investido do poder que lhe foi delegado para salvaguardar uma ortodoxia cultural, ou seja, defender a esfera da cultura legítima contra a mensagens concorrentes, cismáticas ou heréticas, produzidas tanto pelo campo de produção erudita como pelo campo da indústria cultural, e capazes de suscitar, junto às diferentes categorias de público que atingem, exigências contestatárias e prática heterodoxas, o sistema das instâncias de conservação e consagração cultural cumpre, no interior do sistema de produção e circulação dos bens simbólicos, uma função homóloga à da igreja (...) (Bourdieu, 2011, p. 120).
Bourdieu afirma que um dos efeitos ideológicos mais paradoxais e determinantes posto em marcha pelos sistemas de ensino é que ele consegue obter dos alunos que frequentam a escola sob regime obrigatório o reconhecimento da lei cultural.
Não obstante, tal reconhecimento não envolve de modo algum um ato de consciência fundado no conhecimento da lei reconhecida, e muito menos uma adesão eletiva (nos termos do paradigma weberiano do ladrão que, por reconhecer a legitimidade da lei, esconde-se para roubar). Assim como, segundo Hegel, a ignorância da lei não constitui uma circunstância atenuante diante de um tribunal, “a ninguém é permitido ignorar a lei cultural”, nem mesmo aqueles que só vão descobri-la diante de um tribunal das situações sociais capazes de impor-lhes o sentimento de sua indignidade cultural. Pelo fato de estar sempre objetivamente em vigor, ao menos nas relações entre classes diferentes, esta lei impõe-se por sanções, desde as sanções mais brutalmente materiais – como aquelas a que estão sujeitos os indivíduos mais desprovidos de capital cultural nos mercados de trabalho ou das trocas matrimoniais – até as sanções mais sutilmente simbólicas, como por exemplo o ridículo atribuído às “maneiras” contrárias às normas indefiníveis que definem a excelência em uma formação social determinada. O sentimento da dependência e da vassalagem pois implica a impossibilidade de excluir o que exclui, única maneira de excluir a exclusão (grifo meu) (Bourdieu, 2011, pp. 131-132).
Tudo ocorre, segundo o sociólogo francês, da seguinte maneira: as famílias e as escolas são investidas de um poder que lhe é delegado por um arbitrário cultural, assim, elas determinam (consagram) os objetos dignos de serem admirados e “degustados”. Dessa maneira, estão em condições de impor uma aprendizagem ao fim da qual tais obras poderão surgir como naturalmente dignas de serem admiradas (Bourdieu, 2011, p. 272)
Em uma dada formação social, prossegue Bourdieu, o grau em que uma obra de arte é legível é função da distância entre o código que a obra em questão exige objetivamente e o código artístico disponível para um indivíduo particular, e da distância entre o código que a obra exige e a competência individual definida pelo grau em que o código social foi incorporado (Bourdieu, 2011, p. 272).
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Márcio Coelho é mestre e doutor em linguística pela USP-SP e tem mestrado internacional em “Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSo – Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais.
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