A Música Disseminando Ordem
foto: Arquivo RedePT
“Os pássaros trinam, somente o homem canta. E não se pode ouvir canto ou sinfonia sem se dizer imediatamente: “Um outro ser sensível está aqui” – Jean-Jaques Rousseau
Acreditamos que uma sociedade desenvolvida não é a rica e próspera, mas, aquela que transforma dificuldade em desafio, este em sonho, sonho em projetos e, por fim, projetos em resultados. Vejamos por que.
Dificuldade, além da qualidade ou caráter do que é difícil, é aquilo que impede, embaraça, estorva e obstaculiza alguma ação. Com relação a projetos sociais educacionais do poder público baseados na arte, os obstáculos vão desde as dificuldades financeiras até as vaidades políticas, passando pelo descrédito no desenvolvimento da sensibilidade através da arte.
Desafio é o resultado de uma incitação a alguém para que este faça alguma coisa, geral e aparentemente além de suas possibilidades. Todavia, só aceita a persuasão (ou manipulação) dessa incitação aquele sujeito que se assume de esquerda, portanto, aquele sujeito que acredita que esse processo de violência e miserabilidade em que nos encontramos seja um processo histórico e, não, natural, por conseguinte, passível de ser modificado. Se acreditarmos nisso, somos capazes de criar sonhos.
Sonhar significa vislumbrar o sobrepujamento dos obstáculos que se nos põe à frente. Quando sonhamos, estamos começando a projetar o futuro.
Projetar nada mais é do que descrever detalhadamente um empreendimento a ser realizado. Nesse ponto, os três itens anteriores passam da dimensão cognitiva (saber, reconhecer) para a dimensão pragmática (fazer), isto é, esse é o momento de colocar a mão na massa, de buscar resultados que satisfaçam a demanda de paz e justiça social.
Realizar é fazer com que algo tenha existência concreta. Portando, quando estamos na fase da dificuldade, do desafio e do sonho, ainda somos sujeitos virtuais de um fazer. Quando preparamos projetos, nos atualizamos, ou seja, nos aproximamos da realização de um propósito. Só seremos sujeitos realizados quando nossas ações tiverem existência concreta. Quando formos capazes de aferir o nosso percurso de sujeito da transformação social.
De que maneira a prática musical pode dar sua contribuição para a transformação da sociedade?
Acreditamos que somente a educação e a solidariedade podem salvar as relações humanas, em nosso país, atualmente regidas pela entidade abstrata, neoliberal, chamada trabalho. No regime capitalista, a emoção é alijada do processo, e, se aquilo que o sujeito produz não tem um ótimo resultado comercial, ele é excluído do contexto social. Por exemplo, o saber, no que tange a área do conhecimento das ciências humanas, atualmente, não é um saber valorizado pela sociedade, já que não tem um desempenho satisfatório, no que diz respeito a resultados financeiros. Não é à toa que a profissão de professor talvez seja a que mais tenha se desvalorizado nos últimos tempos, perdendo apenas para as profissões extintas ou em extinção.
Acredito que, assim como eu, o nobre leitor tenha uma precisa noção do que seja educação. Todavia, gostaria de ressaltar que, no âmbito de uma educação que busque a paz, a solidariedade é o conteúdo obrigatório, pois acreditamos que ela possa ser a mola mestra de uma profunda transformação social. Ressalto que, quando falo de educação para a solidariedade, consequentemente, para a paz, estou falando da estimulação da consciência da interdependência a que o ser humano está fadado.
O linguista dinamarquês Louis Hjelmslev chama de solidariedade a interdependência entre termos, no processo da fala. Aliás, para a linguística e a semiótica, os termos só interessam, só tem sentido, quando implicados numa relação, ou seja, um fonema só se define a partir da relação com outro. O “a”, por exemplo, só adquire sentido quando está em relação com outro fonema, como quando, em relação com o “p”, formam a palavra “pá”. Assim como o sujeito só se define em relação a um objeto e vice-versa. É quando a vida ganha sentido.
Portanto, solidariedade nada mais é do que o grau mais alto de consciência de que vivemos numa intrincada relação de interdependência com outros seres vivos. Numa sociedade – que, a rigor, é o ambiente humano em que o indivíduo se encontra integrado -, essa interdependência é ainda mais evidente. Nada somos senão a partir da relação com os outros seres humanos e com os nossos objetos de valor.
É desse modo que entendemos a solidariedade: Consciência da interdependência entre os seres humanos de uma determinada sociedade. Caso contrário, a solidariedade, na prática, não passará de ações caridosas, que são necessárias, porém, ineficazes, quando o objetivo for a transformação social.
Do meu ponto de vista, um caminho extremamente eficaz para que consigamos atingir um alto nível de consciência da interdependência humana, da solidariedade humana, é por meio da educação para a sensibilidade.
Sensibilidade é emoção, sentimento, especialmente a faculdade de sentir compaixão, simpatia pela humanidade, mas é também estesia, isto é, capacidade de perceber o sentimento da beleza.
Segundo o semioticista Algirdas Julian Greimas, a estesia causa uma fratura do cotidiano, do curso rotineiro da vida, quando há a flexibilidade das funções sujeito-objeto, a qual ele chama de nostalgia da perfeição. Tudo ocorre como se, em algum lugar remoto (ou melhor, teórico), sujeito e objeto fossem uma coisa só, ou um só corpo. Basta que pensemos no mito de Eva e Adão, para compreendermos que a fratura de um corpo dividido em dois (afinal, Eva foi tirada da costela de Adão) cria a necessidade de busca, de recomposição. Desse modo, fica mais clara a noção de “nostalgia da perfeição”, pois, perfeito é aquilo que está feito (per fatto), portanto, completo.
Em geral, é o sujeito que atua sobre o objeto, mas com a arte é diferente, o objeto artístico atua sobre o sujeito e cria uma situação estonteante quando do primeiro contato entre os dois. Não é difícil recordarmos de alguma obra de arte ou de uma música que nos tenha arrebatado na primeira audição; que nos tenha alijado da cotidianidade rotineira. É isso que Greimas chama de flexibilidade das funções sujeito-objeto.
Quando somos capazes de nos entregar a estesia, somo seres sensíveis, por conseguinte, dotados de compaixão, de simpatia pela humanidade.
Acredito também que o caminho mais curto e eficaz para se chegar à condição de sujeito que sente é por meio da arte. Assim como o diretor de teatro Antunes Filho, acredito que sensibilidade possa ser ensinada.
A contemplação de uma obra de arte é a simulação estética das relações estésicas que estabelecemos desde os momentos prazerosos experimentados no útero materno.
Se buscarmos em nossa memória a lembrança de alguém que goste muito de uma modalidade artística que não seja sensível, certamente não encontraremos.
Então, podemos pensar que a arte pode educar para a sensibilidade. A sensibilidade, com certeza, leva à solidariedade. Esta, pensada como consciência interdependência humana, pode apontar caminhos que desemboquem na paz e na justiça social.
Por acredita nisso, na segunda administração do PT, em Ribeirão Preto, criamos, dentro do Programa Ribeirão Criança, os projetos Curuminzada, Alfabetização sonora, Toque da Lata, Banda na Praça, Oficina de Música da Rua das Tecnologias, Ciranda, Clínica Experimental de Musicoterapia e o 1° Festival Brasileiro da Canção Infantil – Ribeirão Criança.
Como bem disse José Miguel Wisnik: “um único som afinado já insemina um princípio de ordem no universo”. Imaginem a infância de uma cidade fazendo musica.
---Márcio Coelho é secretário de Cultura do PT de Ribeirão Preto
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