As lições que chegam da Inglaterra e o PT
Foto: Stefan Wermuth/Reuters
O deputado de esquerda, eleito com 59,9% dos votos internos, derrotou as forças de centro e do novo trabalhismo de Tony Blair. Tal desempenho indica que partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios.
Em julho deste ano, escrevi para Teoria e Debate um artigo sobre o plebiscito grego no qual afirmava que "a vitória do ‘não’ no referendo grego, no último 5 de julho, não levou a Grécia ao socialismo, como fantasiaram alguns, mas à negociação de condições melhores de seu resgate, o que pode abrir um ciclo de vitórias para as novas (e velhas, porém, renovadas) forças populares europeias".
Pois bem. Eis que Jeremy Corbyn, deputado de esquerda, foi eleito líder do Partido Trabalhista inglês com 59,5% dos votos internos, superando rivais de centro, mas um em especial: Liz Kendall, ligada ao Novo Trabalhismo do ex-primeiro-ministro Tony Blair, que marcou reles 4,5%. O sufrágio ocorreu na semana passada.
Uma lição e tanto para quem analisa a esquerda mundial sob uma visão doutrinária baseada em epítetos, dogmas e preconceitos teóricos. Não foi nenhum grupo propagandista de extrema esquerda ou uma "novidade conectada" que renovou as esperanças dos trabalhadores britânicos, somando-se ao novo impulso para uma esquerda realmente de esquerda na Europa, que promova uma "Europa melhor", como registrou Corbyn. Foi o velho trabalhismo, centenário, profundamente vinculado ao mundo do trabalho e de massas. Um partido nacional e popular, estruturado sobre as lides laborais, mas portador de uma azeitada máquina eleitoral não de hoje – serviu tanto a Clement Attlee, que organizou o Estado de Bem-Estar Social do país derrotando ninguém menos do que Winston Churchill imediatamente ao pós-Guerra, como ao neoliberalismo mitigado de Blair e Giddens, que contagiou os membros da Internacional Socialista no Velho Continente e fez da socialdemocracia um arremedo, como o visto no poder francês atual ou como sócio minoritário de Angela Merkel, na Alemanha.
Partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar – vide o Partido Justicialista, na Argentina, antes das novas promessas do Labour – e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios e ao que é, suposta e muitas vezes existente apenas na fantasia pós-graduada, seu "espírito social", desgarrado de sua estrutura propriamente dita, a ser fagocitado por este ou aquele "herdeiro legítimo" do tido e havido defunto político organizado como grupos minoritários e, quase sempre, relegados à margem dentro da própria tradição que reivindicam.
Não à toa, o ministro de Defesa de David Cameron, Michael Fallon, afirmou que o “trabalhismo é agora um risco grave para a segurança de nossa nação, a segurança de nossa economia e a segurança de todas as famílias”. Ele sabe que a mensagem do Labour não tem comparação com o impacto provocado por Podemos e Syriza em sua abrangência popular europeia e geopolítica. Sabe que, mais do que incentivar novos agrupamentos críticos à austeridade, pode reencantar o Partido da Socialdemocracia Alemã, quiçá o próprio Partido Socialista francês, além de dar maior ímpeto e coragem ao Partido Democrático da Itália – todos com a mesma natureza do Labour. Além do que, tratando-se do principal aliado global dos EUA, pode influenciar na remodelagem do Partido Democrata americano, que, segundo Paul Krugman, vai apostar numa polarização ideológica com os Republicanos, pondo na mesa o papel do Estado no desenvolvimento econômico e social e em outras relações com a América Latina. Temas "perigosos" como o fim dos bombardeios ao Estado Islâmico no Iraque e na Síria, desarmamento nuclear e diálogo com a Argentina com relação às ilhas Malvinas podem mudar o mundo muito mais do que se imagina.
Mas, antes que alguém brade que se tratou de uma vitória "da esquerda" contra a direita partidária e comece a fazer analogias imprecisas, como quando confundiram o Syriza com partidos e agrupamentos críticos à condução do PT, é importante destacar o centro do programa escolhido junto com Corbyn: aumento do investimento do Estado. Este vem se consolidando como o consenso mundial das esquerdas, inspirado por Krugman, Stiglitz e Piketty, no sentido de gerar empregos, retomar o bem-estar e atacar as desigualdades. Sem falar em Lula, antes de todos estes, que empunhou essa bandeira em seus governos e atraiu a atenção do mundo.
Fazendo uma analogia com o cenário brasileiro, o confronto esquerda versus direita que marcou a disputa no Labour – com êxito da primeira – disse respeito a uma polarização entre a base militante (não apenas filiada) e a coluna vertebral do trabalhismo inglês, o movimento sindical, contra o Labour em seu último governo, com Blair e sua política social-liberal, amparada numa inteligência tecnocrática supostamente neutra.
Só que essa política era amplamente pactuada com a expressão parlamentar do Labour. Logo, é absolutamente incorreto que se diga que a vitória de Corbyn tenha sido das bases contra a burocracia partidária e seus equívocos, por meio de um ajuntamento de correntes antimajoritárias.
O fato é que o Novo Trabalhismo, por sua práxis, deslocou-se organicamente do autêntico Labour do movimento operário e de sua militância diversificada em temas, lutas e opiniões. Destaco isso porque a vitória foi facilitada pela mudança no sistema de votação do partido. Desta vez, o voto, antes restrito aos filiados, estendeu-se aos simpatizantes e valeu a lógica do "uma pessoa, um voto", e não mais a distribuição de pesos para os setores sindical e parlamentar. Disso se reforçou o partido-movimento efetivo, não o partido "estado de espírito", muitas vezes confundido com o primeiro conceito.
---Leopoldo Vieira foi coordenador do Monitoramento Participativo do PPA 2012-2015 e do programa de governo sobre desenvolvimento regional da reeleição da presidenta Dilma
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