As oligarquias praticam o golpe da reconquista
O golpe de classe via parlamento é um processo que gerou uma cadeia de outros golpes com especial atropelo da ordem jurídica e constitucional. Os golpes são contra a diversidade social e de gênero, não mais representada no governo, golpe na cultura, golpe na saúde, golpe nos direitos sociais, golpe nas aposentadorias, golpe judicial e ultimamente golpe nas eleições. Estes golpes têm por detrás as oligarquias conservadoras que utilizaram uma sagaz estratégia de conquistar setores do judiciário, do ministério público, da polícia federal e do corpo de procuradores para conseguir seus fins
Encontraram uma testa de ferro, educado fora do país, para desempenhar esta nova tipologia de golpe: um justiceiro, juiz federal de primeira instância, Sérgio Moro e sua equipe de jovens procuradores, infantilmente exibicionistas. Imbuídos de convicções messiânicas de limpar o país da corrupção – todos queremos – direcionam as investigações unicamente a um partido, ao PT. Desprezandos até agora todas as demais agremiações, com não menos atos de corrupção, concentram o foco nas figuras referenciais como o ex-presidente Lula, vários ex-ministros entre outros. Bem disse o ministro Marco Aurélio Mello: “Moro deixou de lado a lei, isso é escancarado”.
O novidade deste teatro político é a desfaçatez do juiz e dos policiais federais de passar por cima de direitos, consagrados na constituição e em todo o mundo, como a presunção de inocência, aplicação da prisão preventiva ou coercitiva, sem qualquer necessidade, o intencional e irresponsável vazamento de gravações, sequer respeitando a suprema autoridade do país, como foi o caso da presidenta Dilma Rousseff, a delação premiada, conseguida sob forte pressão psicológica e a especialmente perversa espetacularização das ações policiais, avisando previamente meios de comunicação massivos em conluio com esses desmandos.
O mais grave é que o juiz Moro, sob os olhos complacentes e quem sabe cúmplices, do STF, criou uma nova figura jurídica ao arrepio da Constituição: o tribunal de exceção. Afirma “que o processo não precisa seguir as regras dos processos penais comuns porque traz problemas inéditos que exigem soluções inéditas”. Em outras palavras: não precisa se subordinar à Constituição e às leis como todos. Cria uma soberania própria e um tribunal inédito, cujo nome verdadeiro é tribunal de exceção.
Pareceria que o juiz Moro tanto estudou a máfia italiana e os métodos norte-americanos que se tornou ele mesmo um mafioso da justiça ou um seguidor do jurista Carl Schmitt que, no tempo do nazismo, defendia uma soberania absoluta, conforme a vontade do “Führer” ou do “Ducce” (“o Führer e o Ducce sempre têm razão”, se dizia). Segundo este jurista, é a decisão do chefe que funda o direito e não ao contrário: é o direito que limita a decisão do chefe (cf. O conceito do político, Vozes 1992).
Entre muitas razões subjacentes a este golpe de classe enfatizo apenas duas: o ódio que a classe dominante tem e sempre teve da população pobre e negra. Não sou eu quem o diz. Denunciou-o recentemente Jessé Souza em seu livro A estultície da inteligência brasileira (Leya 2015) e anteriormente o grande historiador e acadêmico José Honório Rodrigues em seu clássico: Conciliação e Reforma no Brasil (Civilização Brasileira 1965):”a maioria foi sempre sofrida e sempre viu desfeita sua esperança de melhoria;…as oligarquias negaram seus direitos, arrasaram sua vida, conspiraram para colocá-la de novo na periferia, no lugar que continua achando que lhe pertence”(pp. 14 e 31). Ocorre que um representante destes desprezados, que não foi educado na escola do faraó, chegou a ser presidente e transformou profundamente a vida de milhões de pobres.
Isso é intolerável para as oligarquias, habituadas a ocupar o Estado e seus aparatos não em vista do bem de todos, mas de seus interesses particulares. Lula e seus assemelhados são odiados por isso. Elas nunca apreciaram a democracia os, mas regimes fortes e ditatoriais que lhes facilitam a acumulação, uma das mais altas do mundo. Jamais entenderam o poder como expressão jurídico-política da soberania de um povo, mas como dominação em função do enriquecimento. Sérgio Moro forneceu o enquadramento jurídico canhestro para dar vazão a este ódio de classe.
Um segundo fator cabe ser ressaltado: a estratégia de reconquista por parte das oligarquias, aquele punhado de famílias de super-ricos (0,05 da população) que controlam grande parte da renda nacional e que possuem imenso poder econômico, político e mediático. Visam voltar ao lugar que ocuparam por séculos, mas que, agora com a situação histórica mudada, jamais chegariam por via democrática, expressa pelo voto popular. Mas o fazem com a trama de um golpe parlamentar vergonhoso.
Essas oligarquias representam a ordem e acultura do capital, cruel e desumano, que nunca mostraram solidariedade para com as grandes maiorias sofredoras. Praticam uma economia altamente concentradora e predatória de bens e serviços naturais, produzindo externalidades, quer dizer, injustiças sociais graves e ambientais altamente danosas, das quais se eximem de responsabilidade e jogando ao Estado o ônus de sua reparação. Um grupo deles pratica ainda trabalho semelhante ao escravo, levando os trabalhadores a um verdadeiro extermínio físico e psicológico.
Eles agora voltaram para realizar a sonhada reconquista só possível à revelia da constituição. Aplicam medidas neoliberais das mais deslavadas, atropelando conquistas históricas dos trabalhadores e enxovalhando a inteligência brasileira. E o fazem com furor, respaldados por um tribunal de exceção e pela leniência do STF.
Esperamos a rejeição desta reconquista, pelos movimentos sociais, quiçá os únicos, nas ruas e nas praças de todo o país, capazes de inviabilizar esse retrocesso histórico infame.
---Leonardo Boff é articulista do JB On line e escreveu: A grande transformação, Vozes 2015.
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