O Direito Trabalhista como mediação do conflito de classes
Ilustração: Fernanda Queiroz
No dia 1.º de maio de 1886, quase meio milhão de trabalhadores cruzaram os braços nos Estados Unidos em busca de uma jornada de trabalho de oito horas diárias. O país vivia uma franca expansão industrial e era comum uma pessoa trabalhar até mais de 60 horas na semana, para ganhar em volta de US $ 1,50 por hora trabalhada. Sem proteção alguma, a ameaça do desemprego pairava sobre a sua cabeça e isto certamente definia o seu comportamento de aceitar um contrato de trabalho tão desumano quanto este, afinal, ela e sua família precisavam sobreviver. As marcas do grande incêndio de Chicago e de outras greves, porém, fazia com que a classe trabalhadora da época se organizasse cada vez mais e a burguesia respondesse com intensa violência, inclusive contratando milícias e incitando conflitos étnicos para desuni-los. Três dias depois, uma bomba foi lançada contra a polícia, que reagiu abrindo fogo contra os trabalhadores, matando uma dezena e prendendo uma centena. O Estado condenou, sem provas, sete trabalhadores à morte por enforcamento, enquanto torturava testemunhas até que elas dessem a versão que a elite queria que o júri ouvisse.
Esses episódios de violência aberta não só eram comuns naquela época, como escalavam à medida em que a desigualdade social avançava. Não era raro a um cidadão qualquer enxergar o trabalhador como uma pessoa de qualidade inferior à de um empresário. As greves eram imprevisíveis e, por vezes, acendiam ânimos revolucionários, como é o exemplo da Greve Geral de 1905, cuja repressão violenta lançou as sementes da Revolução de Outubro, na Rússia. É inegável que o fortalecimento do movimento operário resultou em sucessivas conquistas, mesmo no mundo capitalista, como a erradicação do trabalho infantil, a jornada de 8 horas, as férias, entre outros; se é verdade que o Direito é uma forma jurídica do capital, a materialização desse direito no dia a dia é uma expressão da luta e do sangue do movimento operário. Conforme os dissídios foram sendo mediados pela Direito do Trabalho, as greves foram se tornando mais previsíveis e pacíficas, o que certamente trouxe um ganho até mesmo para a classe burguesa.
Após o fim da Guerra Fria, o mundo capitalista se viu fortalecido novamente para avançar sobre as conquistas históricas dos trabalhadores. O neoliberalismo vem destruindo todos os mecanismos de moderação de conflitos, a começar pelo sindicato, passando pela Justiça do Trabalho e pelo próprio Direito. Os trabalhadores estão vendo suas condições se deteriorarem cada vez mais; a desregulamentação do trabalho e o desmonte desse ramo do Judiciário estão levando, cada vez mais, a uma situação que guarda certas correlações com os movimentos da era das revoluções industriais do século XIX – um passado onde os conflitos eram resolvidos na violência física e que pode acender o pavio de rupturas institucionais, seja no campo revolucionário, seja no campo reacionário, apontando para um futuro ao qual ninguém consegue ter o mínimo vislumbre de como será.
Certamente as relações de trabalho após a pandemia não serão mais as mesmas; o capitalismo da mediação, de plataformas, se consolidou na urgência de tentar salvar os negócios, e vários postos de trabalho serão extintos, em razão da necessidade de equilibrar o caixa das empresas e do contato com as novas tecnologias. Novas formas de reorganização do trabalho surgirão, o que demandará em novas formas de organização sindical. O Estado, que hoje se nega em fazer o seu papel, deverá ser um Estado forte, democrático e participativo, que garanta o bem-estar da classe trabalhadora - é preciso reanimar o Direito do Trabalho. No campo organizativo, é certo que os trabalhadores irão reagir, por mais que a batalha ideológica tenha se dado no espírito do capitalismo neoliberal, as necessidades materiais dessas pessoas ditarão a sua luta - é preciso fortalecer os sindicatos, pela base, para acolher essas pessoas e mostrar que um novo modelo de sociedade, mais inclusivo, justo e humano, é possível.
Fernando Tremura, nascido e criado em Ribeirão Preto, advogado e servidor público da Universidade de São Paulo (USP). Tremura foi presidente do PT.
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