Darcy Ribeiro não suportaria
"...Darcy Ribeiro não suportaria a mediocridade pedindo passagem, arrogante, no divino sambódromo do mercado das ideias simples..."
A TV Senado apresentou documentário sobre a vida de Darcy Ribeiro, antropólogo, educador, político, autor de tantos livros, inclusive de O povo brasileiro, que é o último. Ministro da Educação, ministro-chefe da Casa Civil do governo João Goulart, vice-governador e secretário da Cultura do Rio de Janeiro, senador, secretário de Desenvolvimento Social de Minas Gerais, gostava, no entanto, de ser chamado de educador. Indianista, devotou-se à identidade brasileira e latino-americana. O Brasil oficial de 1964 o cassou, e essa rejeição serviu-lhe para se dedicar às reformas educacionais do Uruguai, Chile, Peru, Venezuela, com andanças pela Costa Rica e México.
Nasceu em Montes Claros (MG), em 26 de outubro de 1922, e faleceu, em Brasília, no dia 17 de fevereiro de 1997. Escreveu ensaios, críticas, romances e ingressou na Academia Brasileira de Letras.
O depoimento de Eric Nepomuceno no texto “As perguntas que nunca fiz”, publicado no suplemento semanal do jornal Valor Econômico de 17 de fevereiro de 2017, refere-se à contundência do discurso que ele pronunciou em 1978, na Sorbonne, quando recebeu a honraria, como primeiro brasileiro a fazê-lo, de doutor honoris causa. Darcy fala de seus fracassos, que constituem, no entanto, seus “únicos orgulhos”: como antropólogo, simplesmente não salvou os indígenas do Brasil; como educador, não conseguiu escolarizar todas as crianças brasileiras; como cidadão, não realizou a reforma agrária, e não conseguiu “pôr em marcha um programa de controle pelo Estado do capital estrangeiro de caráter mais aventureiro e moral”.
Um depoimento do final de sua vida, roída e corroída por um câncer, feito e dado entre idas e vindas a hospital de Brasília, conta a história da amiga que o procurou após telefonema seu. E ouviu dele essa vontade surpreendente: “Eu quero dar uma aula”. “Uma aula?”, ela perguntou perplexa. “É, sim, uma aula”, confirmou.
Tal vontade é aquela que tudo se faz para realizar, como ela o ajudou a realizá-la.
A dúvida inicial ficou superada, a criança de nove anos foi chamada. Era filho dela.
Ali ficou Darcy Ribeiro, o grande educador. Ali, ficou diante dele, o menino.
E Darcy proferiu a aula magna para um só aluno. A simbologia do ato é riquíssima. Fê-lo pelo que a criança era. Fê-lo pelo que ela poderia ser um dia. Visionário, seguramente, desejava mais um vínculo com o futuro do seu país.
Falou da cultura indígena. Falou da força de originalidade do Brasil nativo, que umedeceria a cultura branca e negra do Brasil, que seria forte e denso, na criatividade e na liberdade de nosso povo e nossa gente.
Falou, finalmente, de duas de suas criações, como símbolo de saberes: a Universidade de Brasília e o sambódromo do Rio de Janeiro. Um representa o saber acumulado dos livros e dos mestres; o outro, a cultura popular.
Ambos de igual valor, concluiu sua lição.
O Brasil oficial de hoje faria o desespero e a morte de Darcy. Afinal, nosso Supremo Tribunal Federal julga desigualmente políticos envolvidos em atos-fatos iguais, trata com obsequioso silêncio abusos de direito, como os dos vazamentos impunes de delações, ou de gravação de diálogos que nada têm de ato ou fato ilícito, enquanto deputados e senadores propõem o esquartejamento da Amazônia, e ainda permitem trâmite legislativo do extravagante projeto da “escola sem partido”, desenhando a proposta de vendas de terras para estrangeiros, que ainda só não prosperou pela resistência de militares, é a tudo isso que se soma a ideia de fazer do indígena um ser produtivo.
Darcy Ribeiro não suportaria a mediocridade pedindo passagem, arrogante, no divino sambódromo do mercado das ideias simples, como toda ideia autoritária, que não mais discute cada problema na perspectiva da soberania nacional e de nação brasileira, conceitos que a globalização engoliu, quiçá provisoriamente.
---Feres Sabino é advogado
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