A carne gorda do abuso
O abuso de autoridade é crescente, quando ela nem é advertida e muito menos punida.
A não repressão do abuso serve de combustível à corrosão da legitimidade das instituições e das leis. Legitimidade é confiança, é crença, é fé.
O impeachment não convenceu a maioria da população. Parte dela tem certeza do golpe parlamentar, a outra desconfia, e a parte que o apoiou, por qualquer interesse político-ideológico ou preconceito, não sabe justificar a substituição, no espaço do Poder governamental, por tantos que, se não caíram, estão próximos das malhas da Justiça. Corrói-se a credibilidade do sistema político e das instituições, e o discurso predominante é fazer crer que o maior problema do país é a corrupção.
A síntese dessa corrosão, até oficialmente verbalizada no campo da Justiça, está na decisão do Tribunal Federal de Recursos da 3a Região, confirmada pela sua Corte Especial, que construiu absurda inconstitucionalidade na representação de 19 advogados só para não punir o juiz Sergio Moro pelo ato de deixar vazar o que não era pertinente a nenhum processo da Lava-Jato. A decisão, em outras palavras, afirma estarmos num Estado de exceção, pois, “a operação na Petrobrás não obedece ao ordenamento jurídico comum e o Supremo Tribunal Federal perdoa esse tipo de conduta, quando é para um bem maior”. Em que campo fúnebre se encontra esse tal ordenamento jurídico incomum, senão o criado pela vontade individual da arbitrariedade?
Essa inconstitucionalidade representa uma bomba de hidrogênio na efetividade dos direitos fundamentais da pessoa. A doutrina constitucional portuguesa, com o magistério de J. J. Gomes Canotilho, ensina que tal violação deve ser expurgada da decisão judicial, com a lei, apesar da lei ou contra a lei. Mais ainda: esse ponto da decisão judicial não prescreve nunca, tal sua violência intensificada contra a essência do Estado Democrático de Direito. E a nossa Constituição Federal, no seu artigo 1o, dispõe que “A República Federativa do Brasil […] constitui-se em Estado Democrático de Direito”.
Essa disparatada declaração não recebeu nenhuma censura do Conselho Federal da OAB, das Associações de Promotores, de procuradores, magistrados, nem dos órgãos nacionais de disciplina. Todos permaneceram na residência confortável e repousante do “silêncio obsequioso”, fazendo com que a descida da credibilidade pública ficasse mais clareada e disponível ao descrédito.
Soma-se, como antecedente, nesse ambiente de arrogância, o espetáculo midiático de promotores, procuradores e delegados, que se desejam vistos como salvadores do Brasil em nome da moralidade pública. Cada um age como se o espaço público de sua função fosse uma propriedade privada blindada.
E o que a Carne Fraca revelou primeiramente, na data do aniversário da Operação Lava-Jato, foi a intenção de disputa de protagonismo, à custa dos danos causados à balança comercial do país, desacreditando o setor industrial e o setor produtor da carne, para o descrédito internacional do país.
Não se soube de nenhuma responsabilização por tal e tanto prejuízo. Tão geral foi a denúncia que parece que toda a carne brasileira está contaminada. Por que não advertiram antes? Por que deixaram em prática, por mais dois anos, a omissão corrupta de fiscais, com o presumível consumo da dita carne de 21 frigoríficos, dentre milhares e milhares do país.
Aproveitaram-se do momento de crise para assim, rapidinho, tirarem a exclusividade da Petrobrás no Pré-sal; para votarem a lei da fixação do teto das despesas, cuja rigidez, e por tanto tempo de vigência, a coloca como única no mundo. Apresentaram a reforma da previdência para favorecer a sua privatização, aumentando a idade e o tempo de contribuição, como se desejassem a morte do povo como estorvo à ambição do mercado, que, contraditoriamente, precisa de consumidor vivo. E no palco do mundo o espetáculo midiático serve a interesses externos. Qual foi o prejuízo pela desvalorização dos ativos brasileiros? Esse prejuízo, um dia, será apurado? Quem vai ressarcir o país por isso?
Mas, a moda agora é brasileira. Ministro do Supremo se reúne com políticos para estudar a maneira como fazer uma reforma política para deixar tudo igual, na invenção das listas partidárias para as eleições. Assim, as vagas ficariam garantidas para que pudessem disputar os que deveriam ir para casa ou para a cadeia, cujos nomes constituiriam indigesta imposição ao voto popular. Procurador da República convoca a população para pressionar o Congresso. Juiz, cuja atuação deve ser discreta, eficiente e honesta, é convidado para falar nos Estados Unidos, e seguramente não foi falar dos jardins de Curitiba. Sua fala, no exterior, como autoridade, não teria sido capturada pelos advogados norte-americanos para enriquecer as ações propostas contra a Petrobrás? Se juiz deve ser discreto, essa imposição ética vale só para o território nacional? Juiz de direito, mesmo achando-se herói, tem o direito de falar, colocando a imagem do Brasil abaixo do crédito? Delegado de polícia pode fazer eclodir, impunemente, uma operação como a do escândalo da Carne Fraca? Procurador pode ocupar redes sociais para conclamar o povo a pressionar o Congresso Nacional?
Quando se insurge contra esse ativismo de autoridades, querendo ocupar o palco da virtude pública, dizia-se que a opinião era de quem defendia o partido político que fora escolhido como o Satã do dia. “Ué, então não era só o PT?”, perguntou o homem simples da banca de jornais.
Agora, no entanto, está claro que o abuso que não é reprimido só tende a virar metástase, já que dispõe da ajuda do silêncio obsequioso de quem deveria protestar, denunciar e reprimi-lo. Afinal, a afirmação do Tribunal Regional Federal da 3a Região coloca um Estado de Exceção como descarada inconstitucionalidade.
Diante dessa triste realidade, diz-se que construção democrática exige um longo e paciente processo, que não pode ser revogado pelo abuso reiterado de autoridade, muito menos por um acórdão, que teve um voto vencido, para alimentar nossa esperança.
---Feres Sabino é advogado
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