PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: DIREITO CONSTITUCIONAL
foto: Arquivo Rede PT
Na reta final do histórico julgamento no Supremo Tribunal Federal – STF acerca do momento em que se deve iniciar o cumprimento de sentença privativa de liberdade, analistas preveem uma virada na posição sustentada pelo STF desde 2016 admitindo a prisão antes de consolidada a culpa em sentença transitada em julgado (quando não cabem mais recursos).
A se confirmar as previsões o tribunal estará decidindo na contracorrente da opinião pública convencida que o melhor para a sociedade é a prisão ocorrer após a sentença condenatória confirmada em segunda instancia de julgamento judicial, mesmo que sobre esta sentença ainda caibam recursos.
O senso comum foi estabelecido no bojo da operação Lava-Jato iniciada em 2014 quando vigorava o entendimento consolidado em 2009 pelo STF, de que a prisão decorrente de sentença condenatória só é legitima após o trânsito em julgado. No curso desta longeva operação dezenas de prisões preventivas foram decretadas atingindo políticos e empresários e se difundiu a ideia de que os implicados resistiriam a delatar seus próprios crimes e de seus comparsas escudados na certeza da impunidade garantida pelo alongamento do prazo necessário a se obter uma sentença definitiva transitada em julgado.
Por conta desta cruzada de combate à corrupção, a opinião pública passou a acreditar que todo o sistema de justiça criminal do país estava comprometido pelo estigma da impunidade e que os criminosos do país deixavam de ser punidos por conta do preceito constitucional que garante a presunção de inocência inscrito no artigo 5º inciso LVII da Constituição Federal.
Pretendo abordar algumas premissas que ajudaram a conformar a opinião publica brasileira tão majoritariamente favorável à execução da pena após condenações em segunda instancia e argumentar pelo equivoco destas premissas com base em dados que poucas vezes foram trazidos ao conhecimento do publico em geral, com isto espero contribuir para tornar menos obscura e ideológica esta discussão.
A primeira questão comumente levantada pelos defensores da tese de cumprimento imediato da pena após a conclusão do julgamento em tribunal de segunda instancia é que o duplo grau de jurisdição (julgamento por um juiz singular e por um colegiado de juízes) seria suficiente para garantir o direito de defesa segundo entendimento consolidado na doutrina internacional e que, no Brasil, nosso sistema jurídico não admite em tribunais superiores (Superior Tribunal de Justiça – STJ e STF), recursos sobre questões de prova acerca da culpabilidade do réu, logo a segunda instancia se consolida como a última a ser considerada para garantir a culpa.
O argumento, verdadeiro na sua essência, constitui um sofisma. Se atentarmos apenas para o Estado de São Paulo, que detém quase um terço dos encarcerados do País [1] constata-se que o numero de recursos que alcançam as condições de aceitabilidade e produzem modificações significativas nas sentenças a favor dos réus após julgados em tribunais superiores é bastante elevado.
São alterações que reduzem as penas e até o regime inicial de cumprimento, criando situações em que o cumprimento antecipado da pena antes do trânsito em julgado, produz injustiça ao sentenciado.
Do ponto de vista ético, bastaria que houvesse um único caso para fundamentar o desatino de levar um individuo para a cadeia sem que se esteja consolidada sua culpa para desacreditar a suposta eficácia jurídica do duplo grau de jurisdição. Afinal, como muito bem apontado pelo Ministro do STF Marco Aurélio Mello, relator das Ações diretas de Constitucionalidade 43. 44 e 54 (ADCs) em julgamento “É impossível devolver a liberdade perdida ao cidadão”.
Ocorre, entretanto, que as estatísticas apontam para dezenas e até centenas de casos em que o STJ e até o STF em sede de Recursos Especial e Recurso Extraordinário reduz significativamente a pena e/ou modifica o regime inicial de cumprimento da pena, impondo ao apenado um ônus antes do trânsito em julgado que o Estado não conseguirá reparar.
Muitos argumentam que estes casos são estatisticamente irrelevantes frente o grande numero de sentenças proferidas nos tribunais de justiça e nos tribunais regionais federais de todo o País que se consolidam imutáveis no trânsito em julgado. E mais, que estes poucos erros são efeitos colaterais modestos diante dos benefícios à sociedade de uma justiça célere preocupada também com os direitos individuais das vitimas e com os direitos difusos da sociedade.
Diante da ausência de números esta argumentação parece fazer sentido pois transmite a ideia de que a execução penal poderá ser postergada indefinidamente por uma sucessão infindável de recursos pondo em risco toda a sociedade.
No entanto , ao nos debruçarmos sobre os dados do CNJ verificamos que o transito em julgado não é tão inalcançável assim. Para tanto basta refletirmos sobre alguns números, como os de novos processos que chegaram às varas criminais de primeira instancia do pais em 2018, que foi de 1,6 milhões e compararmos com o estoque de recursos criminais aguardando julgamento no STJ que era de 43 mil e no STF de apenas 5.000 processos[2]. Fica evidente a disparidade dos números o que demonstra que são poucos os processos que passam por todas as instancias judiciais.
Corrobora esta constatação o extenso levantamento feito pelo Jornal Folha de São Pulo com processos criminais que transitaram em julgado no STJ e STF nos anos de 2009 a 2019. Foram encontrados cerca de 38 mil Recursos Especiais no STJ e 2,5 mil Recursos Extraordinários no STF que, comparados com os processos iniciados e conclusos nas instancias inferiores produziu a relação de que a cada 1.000 sentenças criminais proferidas na primeira instancia apenas 14 chegam ao STJ em sede de recursos especial e só uma chega ao STF como Recursos Extraordinário. Isto ocorre porque o nosso sistema judicial determina filtros para admissibilidade dos recursos às instancias superiores.
É falsa, portanto, a tese de que aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória para iniciar o cumprimento da pena impõe à sociedade ônus irreparável no que tange à sensação de impunidade.
A maioria das sentenças criminais transita em julgado nas instancias inferiores (primeira e segunda instância). Apenas 1,4% delas seguem em recurso para as instâncias superiores.
Os detratores do princípio constitucional da presunção de inocência argumentam ainda que os recursos impetrados aos tribunais superiores postergam em demasia o transito em julgado favorecendo a impunidade que pode ser alcançada pela prescrição das penas.
O argumento já perde muito de sua consistência pela demonstração alhures do pequeno numero de casos que efetivamente alcançam as instancias superiores e ficou ainda mais prejudicado quando confrontado com os números levantados pela folha de São Paulo na pesquisa mencionada. O jornal constatou que a maioria dos recursos que contestam decisões da justiça criminal são julgados em menos de um ano no STJ e no STF. No STJ 63% dos recursos levam até um ano para transitar em julgado, no STF isso acontece em 77% dos casos. Os processos que levaram mais de três anos no STJ para serem finalizados são raros e equivalem, a no máximo, 10% e no STF a menos de 5%.
Para termos uma ideia precisa desses prazos é importante saber que o tempo médio de tramitação dos processos na primeira instancia segundo o CNJ é de três anos e dez meses e nos casos mais complexos de crimes dolosos contra a vida de quatro anos a sete meses.
Não há, portanto, excesso de morosidade nas instancias superiores que justifique antecipar o cumprimento da pena antes de consolidada a culpa em sentença transitada em julgado.
Outra argumentação bastante utilizada pelos defensores da prisão imediata após condenação pelo órgão colegiado de segunda instancia é a de garantia da segurança da sociedade. Sustentam que postergar a execução da pena mantem em liberdade criminosos sobre os quais já se assentou a culpa. Esta é outra argumentação que também não se sustenta, afinal, o nosso sistema penal nunca proibiu a prisão antes do transito em julgado, ao contrário, a lei penal faculta ao magistrado aplicar a prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão preventiva, se entender que se faça necessário à segurança pública, a ordem jurídica ou para o bom andamento da investigação policial.
Fica claro que já não há necessidade de aguardar o trânsito em julgado para se mandar prender ou manter preso alguém que efetivamente precise ser mantido em privação de liberdade em favor da segurança de toda a sociedade. Basta apenas que se fundamente a ordem de prisão. Esta é uma situação que não se confunde com o cumprimento de uma pena de supressão da liberdade aplicada como sanção à uma falta cometida, espécie de ressarcimento à sociedade, castigo imposto à correção do réu e para exemplo com proposito de dissuadir potenciais novos infratores da lei. Nesta modalidade de prisão é altamente recomendável observar a culpa formada acima de qualquer suspeita o que só pode ser assegurado por intermédio de uma sentença irrecorrível, com trânsito em julgado.
Quando o Estado aplica uma sanção ao indivíduo, principalmente aquela que é mais gravosa, de supressão da liberdade, é fundamental a certeza de que se faz justiça não apenas para a contrição e posterior ressocialização do apenado, mas também para o efeito dissuasor na sociedade. Se restar ao reu qualquer obstrução ao seu legítimo direito de defesa, ou pior, a aplicação de uma pena antecipada que depois se mostre indevida, perde todo o sistema de justiça em credibilidade tanto para o sentenciado como para toda a sociedade.
Por fim, pretendo analisar as recorrentes críticas ao STF por fomentar a instabilidade jurídica propondo revisar a interpretação dada ao texto constitucional que estabelece o princípio da presunção da inocência. Argumentam os críticos que tendo sido revista a posição assentada em 2009 em 2016, submetê-la a novo escrutínio em tão pouco tempo produz instabilidade jurídica, advogam pela manutenção da nova interpretação para que tenha mais tempo na produção dos efeitos.
Concordo com a critica ao STF por incitar a insegurança jurídica neste caso, no entanto, julgo poder demonstrar que, ao contrário do que sustentam os que defendem o atual posicionamento do STF, a insegurança jurídica se estabeleceu justamente quando o STF modificou sua interpretação sobre o tema de 2009 e não agora quando rediscute a posição tomada em 2016.
Em apertada síntese vejamos qual foi o contexto da decisão tomada em 2009 pelo STF, revista em 2016 e agora novamente discutida em 2019. Tudo se passa dentro de um processo natural de adequação da legislação penal existente a princípios novos determinados por uma constituição recém promulgada.
Particularmente, no que se refere aos princípio da presunção da inocência, cabalmente enunciado no artigo 5º, inciso LVII nos seguintes termos: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, desde a promulgação da Constituição em 1988, vinha convivendo com a legislação penal e processual penal editada em 1941 que determinava prisão após apresentação de denúncia criminal nos casos de crimes com pena máxima superior a 10 aos, modificada em 1973 pela chamada “Lei Fleury” (Lei 5.941) que permitiu ao réu primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto aguardar em liberdade o julgamento.
Buscando a adequação da Lei Penal ao prescrito na Constituição Federal, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso encaminhou Projeto de Lei nº 4.208, de 2001 de iniciativa do Poder Executivo reformando diversos pontos da lei penal, dentre os quais o artigo 283 do Código de Processo Penal que literalmente propunha “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”.
Referido Projeto decorre medida adotada no final de 1999, pela qual o então Ministro da Justiça, José Carlos Dias, convidou o Instituto Brasileiro de Direito Processual a apresentar propostas de reforma do Código de Processo Penal, para posterior encaminhamento ao Congresso Nacional. Foi constituída uma comissão pela Portaria nº 61, de 20 de janeiro de 2000, pelo Ministro da Justiça foi formada pelos juristas do Instituto Brasileiro de Direito Processual: Ada Pellegrini Grinover (presidente), Petrônio Calmon Filho (secretário), Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti (substituído por Rui Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti.
Ressalte-se que o texto do PL nasceu de uma comissão constituída em 2000 pelo então Ministro da Justiça José Carlos Dias e vários outros juristas que a integraram à época, chegando à Câmara dos Deputados em março de 2001. O PL tramitou por longos dez anos tendo sido aprovado na Câmara Federal, encaminhado ao Senado Federal, lá aprovado com mudanças que obrigaram a uma nova votação na Câmara Federal sendo finalmente levado à sanção presidencial e convertido na lei federal n. 12.403, de 04 de maio de 2011, promulgada na gestão da Presidente Dilma Rousseff.
Foram quatro legislaturas da Casa Legislativa nas quais o PL foi examinado e discutido pelos parlamentares: 1999 a 2002, 2003 a 2006, 2007 a 2010 e 2011 a 2014, em nenhuma delas ocorreu aos parlamentares, legítimos representantes do povo, modificar os termos com que foi proposto o, agora polêmico, artigo 283 do CPP. Este foi aprovado exatamente como elaborado pela Comissão de Juristas que estudaram o tema no ano 2000 antes de encaminharem para discussão na Câmara Federal e no Senado Federal em 2001.
Nem se pode aduzir tratar-se de uma formulação com viés ideológico já que a proposta nasce no Governo do PSDB, tramita e é aprovada no Governo do PT, os dois partidos que protagonizaram o debate ideológico na sociedade brasileira nos últimos 25 anos.
Neste comenos o STF decide, julgando um caso particular que ganha status de repercussão geral, dotar uma posição única para valer no pais inteiro determinando que a prisão de reu condenado ocorra apenas após o transito em julgado, exatamente como proposto no texto do PL que, nesta época, 2009, tramitava no Congresso Nacional já por oito anos.
Com a sanção da lei n. 12,403 que deu nova redação ao artigo 283 do CPP adequa-se a legislação processual penal à Constituição Federal e à interpretação do STF ao inciso constitucional de presunção de inocência do cidadão. Portanto, a decisão tomada em 2009 pelo STF harmoniza o ordenamento jurídico à Constituição de 1988 e ao consenso social expresso na manifestação livre e consciente dos representantes do povo, parlamentares e detentores do poder legítimo para legislar.
Foi a decisão tomada em 2016 reformulando a interpretação estabelecida em 2009 que produziu a instabilidade jurídica e desarmonizou o texto constitucional com a legislação penal.
E como argumento definitivo acerca do alcance do princípio constitucional da presunção da inocência garantido no artigo 5º inciso LVII da Constituição Federal proponho a resposta honesta à seguinte pergunta: -De que serve ao cidadão uma garantia presunção de inocência se o Estado pode impingir-lhe a maior de todas as sanções que é a supressão da sua liberdade antes de que se consolide, de forma definitiva e além de qualquer dúvida a sua culpabilidade?
[1] Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 06 agosto de 2018 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/08/bnmp.pdf
[2] Levantamento realizado pelo Jornal Folha de São Paulo ed 16 de outubro de 2019
Ana Carla Albiero Sousa é advogada, especialista em direito legislativo e membro efetivo regional do Núcleo de Organização de Movimentos Sociais e População de Rua da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP
Comentários